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sexta-feira, 12 de outubro de 2012



A força das primeiras histórias e como as narrativas atravessam a nossa vida

"As histórias – de ‘Runplestiltskin’ a ‘Guerra e paz’ – são uma das ferramentas básicas criadas pela mente humana para facilitar o entendimento. Já tivemos grandes sociedades que nunca usaram a roda, mas nunca existiu uma sociedade que não contasse histórias."
Assim afirma a escritora Úrsula Le Guin1, e se você se dedicar a uma pesquisa sobre a importância e a vitalidade das histórias, dos contos de fada e dos contos populares, de modo geral, certamente encontrará inúmeras afirmações semelhantes em textos de escritores, psicólogos e estudiosos do assunto. Não conheço adulto que não carregue, com especial carinho, as próprias histórias. E como as pessoas se deliciam em revivê-las, a cada vez que é possível contá-las! As histórias da infância vão constituindo o terreno sobre o qual se plantam as conquistas da vida adulta. O escritor José Saramago expressou isso lindamente: Primeiro, ao afirmar "Tentei não fazer nada na vida que envergonhasse a criança que fui." E depois, ao garantir a presença da criança durante toda a vida: "Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei, de mão dada, com essa criança que fui." As histórias da infância vão dando vida e cor às memórias que permanecem e alimentam os anos da velhice. Celso Gutfreind, médico psiquiatra e escritor, nos ensina: "o potencial terapêutico de contar histórias é hoje incontestável. É mesmo possível afirmar que as histórias representaram, sempre e de forma empírica, uma importante contribuição para a estrutura da vida emocional de crianças e adultos."
"É mesmo possível afirmar que as histórias representaram, sempre e de forma empírica, uma importante contribuição para a estrutura da vida emocional de crianças e adultos."
Não conheço criança que não goste de histórias. E convivendo em um meio em que as histórias circulam, antes mesmo dos três anos de idade, a criança começa também a fabular, a contar, a estruturar o seu texto/fala em forma de narrativa. Comecei a contar histórias para Letícia quando ela ainda não tinha completado um ano de vida. Contei, duvidando que ela estivesse entendendo as peripécias do enredo, a astúcia do lobo, a desobediência de Chapeuzinho, mas ao terminar, como o seu vocabulário era ainda bem restrito, ela manifestou sua reação com uma única palavra: "Mais!". Alguns dias depois, a reação não era menos entusiástica, mas a expressão já se fazia mais consistente: "Mais histólia, vovó!" Hoje, com dois anos e dez meses, com um vocabulário que lhe permite contar todas as novidades do dia, além de relacioná-las com episódios anteriores, quando volta da escola é ela quem assume o papel de narradora. E, se alguma dúvida possa existir, quanto ao gênero de seu discurso, saiba que volta e meia ela intercala entre os fatos a expressão "E sabe o que aconteceu?" – recurso naturalmente usado, ao se contar uma história, para aguçar a curiosidade e garantir a atenção do ouvinte. Suas narrativas dão conta e vão dando forma ao enredo de seu dia-a-dia escolar. Assim, ela se torna sujeito de sua fala, assume sua posição no diálogo do mundo e amplia seu vocabulário. Hoje mesmo saiu-se com esta, dirigida a um adulto: "Você é incrível!"
Se a nossa vida é feita de histórias, penso que aquelas que frequentam os primeiros anos de nossas vidas – mais ainda que as dos anos seguintes – são as que mais fortemente se imprimem em nossas memórias. Talvez por conta da extraordinária plasticidade do cérebro infantil, talvez por conta da curiosidade voraz daqueles primeiros anos, não são poucos os escritores que creditam parte de seu sucesso na literatura, às histórias ouvidas quando crianças. Gabriel Garcia Márquez, numa entrevista a Luis Harss e Barbara Dohmann, rememora a avó: "Era uma grande contadora de histórias." E como até a idade de oito anos foi educado pelos avós, sobre este período ele conta: "Tinham uma casa enorme, repleta de fantasmas. Eram pessoas muito supersticiosas e impressionáveis. Em cada canto havia esqueletos e memórias, e depois das seis da tarde ninguém se atrevia a sair do quarto. Citado por Salman Rushdie em Pátrias Imaginárias. Portugal: Publicações Dom Quixote, 1994.Era um mundo de terrores fantásticos2." O mundo excêntrico e formidável de "Cem anos de solidão", de "O amor nos tempos do cólera", do delicioso e imperdível "Do amor e outros demônios" e de outros romances de Garcia Márquez tem ali, nas narrativas e cenários exóticos da infância, a sua origem fundadora. É um escritor que vale a pena visitar, ou seja, ler!
Moacyr Scliar, escritor gaúcho, em vários textos seus refere-se às histórias familiares, lembrança sempre presente em sua vida. Aqui mesmo, numa das aulas, já vimos um comentário seu sobre as histórias e os livros em sua infância. Mas no livro "Porto de histórias – Mistérios e crepúsculo de Porto Alegre", da Record, ao falar do bairro do Bom Fim, aparecem também as histórias daqueles que ali viviam, e o escritor expressa sua gratidão àqueles amigos e vizinhos que, contando, alimentaram a imaginação do menino que iria construir o escritor: "Quando falo do Bom Fim estou falando de minha infância. (...) O Bom Fim dos anos quarenta era diferente; era uma aldeia da Europa Oriental absurdamente, fantasticamente, transplantada para Porto Alegre. (...) À noite – numa época em que ainda não existia tevê e em que a diversão era cara – reuniam-se na casa de um ou de outro e ficavam jogando cartas ou contando histórias. Ah, que grandes contadores de histórias eles eram! Não tenho dúvida alguma de que minha carreira de escritor começou ali, ouvindo as histórias que narravam com tanto prazer e que falavam de seu sonho brasileiro."
A escritora Nélida Piñon, em seu livro de memórias "Coração andarilho", da Record, também presta sua homenagem àqueles que a proveram de histórias, na infância. Descendente de uma família que, pelo lado materno e paterno, saíra da Espanha "para deitar raízes no solo brasileiro", ela reconhece que "os tios, os avós e os pais tinham histórias para contar". E quando, menina ainda, foi cumprir a promessa de conhecer a Galícia, terra dos avós, com a curiosidade e a avidez das crianças, fareja onde moram as narrativas: "Era comum sentar-me no final da tarde ao lado dos velhos à beira da morte, cobrando-lhes histórias que podiam ser de um bisavô, vizinho, bandoleiro, do repertório da guerra civil. Exigia deles lendas imortais, que eu transportasse comigo ao voltar ao Brasil. Cada velho adicionando às narrativas as próprias versões dos fatos, já que assim se reproduziam as histórias oriundas da boca faminta e maliciosa dos grandes rapsodos populares. E, enquanto eles davam início a uma narrativa sem tempo certo para encerrar-se, fui aprendendo que só saberia narrá-las no futuro, e com relativa fidelidade, se me convertesse na escritora que, a pretexto de falar de mim, estivesse, de verdade, falando da coletividade, que é a única narrativa que merece subsistir."
Marina Colasanti, num dos ensaios de "Fragatas para terras distantes" também da Record, ao comentar o poder das narrativas para os seres humanos que, segundo ela, "precisam narrar", cita uma passagem de François Sonkim, referindo-se às histórias da infância: "Para compensar a ausência da minha mãe, meu pai me paternalizava/maternalizava. Não podendo me dar seu leite, ele me deu histórias, me deu o sonho, a arte de sonhar."  E Marina comenta: "Aí está, nas palavras do ginecologista francês François Sonkim, autor de ‘L’amour du père’, o poder da narrativa como alimento primeiro."
Como você vê, não é por simples acaso que, nas sociedades primitivas, os homens se reunissem ao pé de fogueiras acesas para contar os acontecimentos do dia, as lendas e mitos que passavam de pais a filhos. Este parece ser mesmo um atributo do ser humano: somos perpassados por histórias. Elas são o modo como compreendemos a vida e aos outros, além de serem um excelente dínamo para a nossa memória. O cientista cognitivo Mark Johnson esclarece: "A imaginação narrativa – a forma conhecida como história – é a ferramenta básica do pensamento. As faculdades racionais dependem dela. É nosso principal meio de perscrutar o futuro, de prever, planejar e explicar as coisas... A maior parte daquilo que vivemos, do nosso conhecimento acumulado e da nossa atividade mental encontra-se organizada sob a forma de histórias3."
1A escritora norte-americana Úrsula Le Guin refere-se a Runplestiltskin, personagem de um conto popular alemão, recolhido pelos irmãos Grimm. Guerra e paz, de Leon Tolstoi, é considerado um dos maiores romances da literatura, com centenas de personagens e mais de mil páginas na versão original.
2Citado por Salman Rushdie em Pátrias Imaginárias. Portugal: Publicações Dom Quixote, 1994.
3Citado em Daniel H. Pink, O cérebro do futuro. Trad. Alexandre Feitosa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 98.
Última atualização: segunda, 18 abril 2011, 17:54
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