e-book "Supere a si mesmo todos os dias"

https://pay.hotmart.com/I84444557Q

sábado, 20 de outubro de 2012



É lendo que se aprende a ler... e a literatura infantil é a mestra das mestras

"O conto estava em trajes domingueiros: o lenhador, a mulher do lenhador, a sua filha, a fada, todos estes personagens, nossas criaturas conhecidas, adquiriram majestade; seus trajes foram magnificamente descritos, as palavras deixavam suas marcas nos objetos, transformando ações em rituais e eventos em cerimônias."1 Assim Sartre descreve suas impressões ao ouvir pela primeira vez uma história lida. Numa comparação muito apropriada – como se a linguagem falada, do dia-a-dia, aparecesse no texto em "roupas melhores, reservadas para as saídas de domingo", "trajes domingueiros" – ele salienta o aspecto estético da literatura escrita, sua superioridade em relação à linguagem descuidada e menos sofisticada da linguagem oral. E aqui entramos numa questão importante, de que muito se fala nos dias atuais: a chamada "contação de histórias". Justamente porque uma infância sem histórias é o que há de mais pobre, não se pode deixar de ver com entusiasmo os muitos movimentos e projetos existentes hoje, que revivem as práticas de se contar histórias para as crianças. Melhor isso, que nada. Mas pode-se fazer mais.
E por isso, eu gostaria que você soubesse que – mesmo nessa questão – há duas vertentes: de um lado, há aqueles que acham que se trata simplesmente de teatralizar a história e adaptam o texto à sua linguagem: contam com suas próprias palavras, em geral "barateando" o texto, facilitando, usando palavras que acreditam serem mais próximas do universo infantil, simplificando o vocabulário e simplificando também a estrutura sintática. E há aqueles que teatralizam a história, usando os mesmos recursos que encantam a criança, mas – como um bom e verdadeiro ator – memorizam o texto tal como ele foi escrito, mantêm as mesmas palavras da escrita – aquelas que dão a impressão de estarem "em trajes domingueiros", como tão bem descreveu Sartre – reproduzem fielmente as mesmas estruturas sintáticas. Não resta nenhuma dúvida de que estes oferecem às crianças uma oportunidade ímpar de convívio com a língua escrita; oferecem, aos que ainda não sabem ler, um contato enriquecedor com as estruturas sintáticas da escrita, que vai fazer diferença em seu cérebro. Se podemos fazer isso, por que perder essa oportunidade? Se é mesmo inegável a elegância, a riqueza e a superioridade da escrita, em relação à linguagem oral, por que priorizar a fala? Lembre-se que vivemos em um mundo dominado pela escrita e a nostalgia de um passado remoto não vai nos ajudar em nada. Muito menos vai ajudar aqueles que estão nascendo agora. Para desenvolver a oralidade, melhor será uma situação de diálogo, em que a criança seja desafiada a falar, a expor seus próprios pensamentos, traduzindo-os na expressão oral. E para isso é importante um vocabulário rico. Histórias escritas devem ser contadas tal como foram registradas. Preocupo-me em detalhar esse assunto, porque gostaria de convencer você com argumentos que considero irrefutáveis. Não se trata 
de simples opinião, ponto de vista distinto. Trata-se de pesquisas e pesquisas sobre a aquisição da linguagem, sobre o domínio da escrita/leitura; confirmação científica acerca do desenvolvimento cognitivo da criança. São estudos muito sérios.
Vimos, na aula anterior, alguns testemunhos acerca de como as histórias são providenciais na formação da estrutura emocional de crianças e adultos e como a fantasia tem papel importante na vida do ser humano: simbolicamente somos confrontados com nossos medos e dificuldades mais '1íntimos; exercitamos nossa relação com o outro e vivenciamos a precariedade inerente ao ser humano; enfrentamos, na ficção, o inexorável, os riscos, as perdas, a morte e as histórias nos ensinam que a vida continua. Isso nos fortalece para enfrentar o real. Reconhecemos a limitação que é comum a todos, que faz parte de nossa condição humana. Aprendemos a exercitar um pensamento dialético: as coisas são assim, mas podem ser diferentes. Neste sentido, histórias populares ou da literatura infantil contemporânea enriquecem o mundo interior das crianças, assim como a leitura da literatura, a leitura de ficção – romances e contos – enriquece o mundo interior dos adultos. Mas, para as crianças, o contato com as histórias – tal como foram registradas e publicadas em livros – é mais, muito mais que somente isso. (Não tenho dúvidas de que o mesmo vale para os adultos.)
Vamos falar agora do extraordinário processo de aquisição da língua materna por uma criança: em geral, as pessoas convivem com o bebê todos os dias e não se dão conta do fabuloso processo vivenciado pela criança – entre o nascimento e os três anos de idade ou pouco mais – em que ela, paulatinamente, vai se assenhoreando da língua materna de forma quase perfeita, dominando um vocabulário extenso e formas sintáticas complexas, usando corretamente tempos e pessoas verbais, concordâncias verbais e nominais e isso tudo sem nenhuma aula programada, tudo acontecendo da forma mais natural possível. É absolutamente extraordinário! E para que esse processo se dê em toda sua pujança, para que este enorme progresso seja atingido pela criança sem dificuldade, a leitura de histórias, para ela, tem primordial importância. Não é apenas conhecer a história de Chapeuzinho Vermelho, é ouvir a história registrada "em trajes domingueiros", repito. É entrar em contato com um padrão léxico de nível superior, com estruturas sintáticas diferentes, é aprender novas palavras, nova linguagem.
Veja como Maryanne Wolf – que você já conhece – refere-se ao papel dos livros e da leitura de histórias, nos primeiros anos de vida: "A pura falta de acesso aos livros terá um efeito demolidor sobre a bagagem lexical e o conhecimento de mundo que uma criança deveria adquirir em seus primeiros anos."2 Ela se refere a uma pesquisa realizada em Los Angeles e aponta seu resultado: nas comunidades mais pobres não se encontrou nenhum livro infantil em casa; no grupo médio havia em torno de 3 livros somente; enquanto isso, no grupo mais favorecido, as crianças tinham acesso a inúmeras histórias contidas em mais ou menos 200 livros diferentes. Outra pesquisa, realizada na Califórnia, mostrou uma realidade que, segundo ela, gera graves consequências: que "aos cinco anos de idade, algumas crianças provenientes de meios linguisticamente pobres terão ouvido 32 milhões de palavras a menos, dirigidas a elas,

que uma criança de classe média."3 Veja que essa é a conclusão que leva os pesquisadores a recomendar a conversa com as crianças, desde os primeiros meses de vida. E a reconhecer o quanto é benéfica a leitura das histórias, uma vez que, na língua escrita, o número de palavras usadas em geral é maior, os detalhes são salientados e a diversidade vocabular é mais rica.
Só para você ter uma ideia, o item de onde extraí as duas citações do livro de Maryanne, recebeu dela o seguinte título: "A guerra contra a pobreza léxica". Ela afirma que as crianças provenientes de um meio linguisticamente pobre, já entram na educação infantil e nas classes de alfabetização em desvantagem e assim ela argumenta: "Não se trata simplesmente de uma questão do número de palavras que não se ouviu ou não se aprendeu. Se não se ouvem as palavras, não se aprendem os conceitos. Quando não estamos familiarizados com as formas sintáticas, sabemos menos da relação entre os acontecimentos em uma história. Uma pessoa que desconhece as formas narrativas tem menos capacidade para deduzir e fazer previsões. Se a tradição cultural e os sentimentos das outras pessoas nunca foram experimentados, compreender os sentimentos dos que nos rodeiam é mais difícil."4 Como você vê, tudo isso nos atinge diretamente: somos herdeiros de um país que ainda não conseguiu alfabetizar integralmente sua população; muitas crianças começam a patinar, sem sair do lugar, ainda na classe de alfabetização; temos um grande contingente de analfabetos funcionais e de pessoas sem acesso aos livros; e a leitura – vimos nas primeiras aulas – é tida como opção de lazer por pequeníssima parcela de brasileiros.
1Esta citação encontra-se em Rego, Lúcia Lins Browne. Literatura infantil: Uma nova perspectiva da alfabetização na pré-escola. São Paulo: FTD, 1988, p. 51.
2Wolf, Maryanne. Cómo aprendemos a leer – Historia y ciencia del cerebro y la lectura. Barcelona: Ediciones B, 2008, p. 127 ( tradução nossa do espanhol).
3Idem, p. 126
4Id., p. 126. "Se a tradição cultural e os sentimentos das outras pessoas nunca foram experimentados..." Através das histórias, em situações fictícias, aprendemos sobre os sentimentos dos outros.