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terça-feira, 22 de julho de 2014

Deus e o diabo de Guimarães Rosa

Jornal da UFRJ março 2006 p.24 (por Joana Jahara)

Deus e o diabo de Guimarães Rosa
                Há 50 anos Guimarães Rosa revolucionava a literatura brasileira com “Grande Sertão: Veredas”. Considerado pelos críticos como o principal romance brasileiro do século XX, o livro inventou uma nova língua para traduzir a epopeia sertaneja. A história do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim, é o centro da narrativa, que além de técnica e linguagem surpreendentes, produz uma análise profunda dos conflitos psicológicos presentes na história.
                João Guimarães rosa nasceu um Cordisburgo, centro-norte de Minas Gerais, em 1908. Formou-se em Medicina e clinicou pelo interior do estado. Mas, a profissão não foi o seu forte, nem a diplomacia, atividade que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas. Em sua autoanálise, define que “chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte.” Guimarães faleceu aos 59 anos, em decorrência de um enfarte, três dias após tomar posse na Academia Brasileira de Letras.
                O lançamento do romance “Grande Sertão: Veredas”, em 1946, causou um grande impacto na crítica. Essa, acostumada a um outro tipo de obra , de linguagem coloquial sóbria e narrativa de caráter social e temática nordestina, de autores como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, entre outros da segunda geração modernista, chocou-se com as inovações linguísticas do livro.Guimarães rosa, considerado um poeta da terceira geração, foi acusado de se dedicar excessivamente à forma, à linguagem , em detrimento do conteúdo.
                Eduardo Coutinho, professor do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de letras/ UFRJ e estudioso de Guimarães, afirma que a acusação de ser conservador e alienado foi revista pela crítica posteriormente: “em princípio, não se havia percebido que essas inovações formais implicavam em algo muito mais amplo”. “A sua proposta era de caráter estético-político, onde a intenção era de parar, pensar e refletir sobre as estruturas estabelecidas, verdades até então consideradas inquestionáveis”.
                Exemplos de trechos do livro não faltam para entender que as inovações postas por Guimarães rosa ocorrem em todos os estratos da linguagem. Seja no plano do léxico, da sintaxe, da morfologia e também do fonético. “Em uma análise de caso morfolexical (morfológico e de vocabulário), logo no início do livro, o leitor se depara com a palavra sozinhozinho. Ele a estranha, porque ela não faz parte da norma corrente da linguagem. Esse estranhamento faz com que se pare um pouco a leitura e pense sobre qual o sentido em reduplicar o sufixo. A intenção é mostrar que a palavra sozinho é diferente de só. Isso é fascinante no Grande Sertão, porque são essas mudanças que alteram inclusive o plano da estrutura narrativa”, analisa Coutinho.
                O romance é formado inteiramente a partir da linguagem e é ela que dá vazão às ações e justifica as façanhas dos jagunços, em um tempo indeterminado, mas num espaço definido, na fronteira entre Minas Gerais, Bahia, e Goiás. É o sertão de Guimarães rosa, mítico, diferente do sertão circunscrito cientificamente por Euclides da Cunha, em Os Sertões (1902), livro que, de acordo com Eduardo Coutinho, é remetido com uma certa frequência.
Ser e não ser
                Para compreender a intenção de Guimarães rosa é preciso ir além. O ritmo do livro se diferencia em certos momentos, ora acelerado, ora lento, na mistura entre prosa e poesia. Elementos excludentes parecem se completar: Deus e o diabo, céu e terra, dia e noite, amor e violência, o bem e o mal, e a morte. “É uma formidável indagação sobre tudo isso, que vem de toda uma tradição literária. Afinal, o diabo existe? É a pergunta que ele faz no livro. O protagonista Riobaldo se pergunta o tempo todo sobre o estranho sentimento que nutre em relação ao jagunço Diadorim (na verdade, uma mulher disfarçada de guerreiro para vingar a morte do pai). Não ter percebido que era uma mulher é o que mais o atormenta. Para Guimarães Rosa, faz parte do aprendizado saber que é preciso haver distanciamento para enxergar uma devida situação”, afirma Eduardo Coutinho. O Grande Sertão: Veredas conta com a experiência biográfica do autor. Foi na região que ele cresceu. Relatar com um distanciamento o faz entender e também descobrir situações ocorridas quando era jovem.
                O olhar roseano desmonta toda uma tradição que sustenta a modernidade ocidental e que vem sendo posta desde o início do século XX.  Põe em xeque a perspectiva excludente da lógica cartesiana a tradicional: ”as coisas são ou não são. Isto é ou não é. To be or is not to be. No Grande Sertão, uma espécie de lógica inclusiva vai se opor a esse pensamento. Ao invés do ser ou não ser, tudo passa a ser e não ser. Com base nisso pode-se dizer da relação ente Riobaldo e Diadorim: é e não é homossexual, é mulher e não é (inserindo o papel do sexto sentido), como todas as dúvidas de Riobaldo que são e não são”, analisa Coutinho. O que existe é o homem humano atravessado por espantos e perplexidades onde o bem e o mal, ao invés de se oporem, acabem se completando. Enfim, eternas contradições humanas. O diabo existe.



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