(Comentário em Nota Biblioteca Digital Paulo Freire
10/9/2003 18:54:22
Esta obra pertence ao acervo da Biblioteca Central da UFPB.)
PEDAGOGIA DA AUTONOMIA
Saberes Necessários à Prática Educativa
Paulo Freire
PEDAGOGIA DA AUTONOMIA
Saberes Necessários à Prática Educativa
25ª Edição
PAZ E TERRA
Coleção Leitura
ãAna Maria A. Freire
Produção gráfica: Kátia Halbe
Capa: Isabel Carballo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Freire, Paulo
Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa / Paulo Freire. – São Paulo: Paz e
Terra, 1996. – (Coleção Leitura)
ISBN 85-219-0243-3
I. Autonomia (psicologia) 2. Educação 3. Ensino 4. Prática de Ensino 5. Professores – Formação
profissional I. Título II. Série
96-5263 CDD-370-115
Índices para catálogo sistemático
1. Autonomia do educando: Educação 370.115
2. Pedagogia da autonomia: Educação 370.115
EDITORA PAZ E TERRA S/A
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2002
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Dedicatórias
A Ana Maria, minha mulher, com alegria e amor.
Paulo
A Fernando Gasparin, a cujo gosto da rebeldia e a cuja disponibilidade à luta pela liberdade e pela
democracia muito devemos.
Paulo Freire
À memória de Admardo Serafim de Oliveira.
Paulo Freire
A João Francisco de Souza, intelectual cujo respeito as saber de senso comum jamais o fez um
basista e cujo acatamento à rigorosidade científica jamais o tornou um elitista e a Inês de Souza, sua
companheira e amiga, com admiração de
Paulo Freire
A Eliete Santiago, em cuja prática docente ensinar jamais foi transferência de conhecimento feita
pela educadora aos alunos. Ao contrário, para ela, ensinar é uma aventura criadora.
Paulo Freire
Aos educandos e educandas, às educadoras e educadores do Projeto Axé, de Salvador da Bahia, na
pessoa de sue incansável animador Cesare de La Roca, com minha profunda admiração.
Paulo Freire
A Ângela Antunes Ciseski, Moacir Gadotti, Paulo Roberto Padilha e Sônia Couto, do Instituto Paulo
Freire, com meus agradecimentos pelo excelente trabalho de organização dos capítulos desta
Pedagogia da Autonomia.
Paulo Freire
Gostaria igualmente de agradecer a Christine Röhrig e a equipe de produção e revisão da Paz e Terra
pela dedicação com relação não só a este como a outros livros meus.
ÍNDICE
Prefácio............................................................................................................................ 7
Primeiras Palavras ............................................................................................................. 9
Cap. 1-Não há docência sem discência......................................................................... 12
1.1 – Ensinar exige rigorosidade metódica...................................................................... 13
1.2 – Ensinar exige pesquisa............................................................................................14
1.3 – Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos ................................................ 15
1.4 – Ensinar exige criticidade........................................................................................ 15
1.5 – Ensinar exige estética e ética.................................................................................. 16
1.6 – Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo ................................... 16
1.7 – Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação ..... 17
1.8 – Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática................................................................. 17
1.9 – Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural.............................. 18
Cap. 2-Ensinar não é transferir conhecimento..................................................................... 21
2.1 – Ensinar exige consciência do inacabamento............................................................... 21
2.2 – Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado................................................ 23
2.3 – Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando........................................... 24
2.4 – Ensinar exige bom senso........................................................................................... 25
2.5 – Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores........ 27
2.6 – Ensinar exige apreensão da realidade .......................................................................... 28
2.7 – Ensinar exige alegria e esperança ............................................................................... 29
2.8 – Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível............................................. 30
2.9 – Ensinar exige curiosidade.......................................................................................... 33
Cap. 3-Ensinar é uma especificidade humana...................................................................... 36
3.1 – Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade ................................... 36
3.2 – Ensinar exige comprometimento................................................................................. 37
3.3 – Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo ...... 38
3.4 – Ensinar exige liberdade e autoridade ........................................................................... 40
3.5 – Ensinar exige tomada consciente de decisões................................................................ 42
3.6 – Ensinar exige saber escutar....................................................................................... 43
3.7 – Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica................................................ 47
3.8 – Ensinar exige disponibilidade para o diálogo ................................................................. 50
3.9 – Ensinar exige querer bem aos educandos ..................................................................... 52
Prefácio
Aceitei o desafio de escrever o prefácio deste livro do Prof. Paulo Freire movida mesmo por uma das
exigências da ação educativo-crítica por ele defendida: a de testemunhar a minha disponibilidade à
vida e os seus chamamentos. Comecei a estudar Paulo Freire no Canadá, com meu marido,
Admardo, a quem este livro é em parte dedicado. Não poderia aqui me pronunciar sem a ele me
referir, assumindo-o afetivamente como companheiro com quem, na trajetória possível, aprendi a
cultivar vários dos saberes necessários à prática educativa transformadora. E o pensamento de Paulo
Freire foi, sem dúvida, uma de suas grandes inspirações.
As idéias retomadas nesta obra resgatam de forma atualizada, leve, criativa, provocativa, corajosa e
esperançosa, questões que no dia a dia do professor continuam a instigar o conflito e o debate entre
os educadores e as educadoras. O cotidiano do professor na sala de aula e fora dela, da educação
fundamental à pós-graduação. É explorado como numa codificação, enquanto espaço de
reafirmação, negação, criação, resolução de saberes que constituem os “conteúdos obrigatórios à
organização programática e o desenvolvimento da formação docente". São conteúdos que,
extrapolando os já cristalizados pela prática escolar, o educador progressista, principalmente, não
pode prescindir para o exercício da pedagogia da autonomia aqui proposta. Uma pedagogia fundada
na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando.
Como os demais saberes, este demanda do educador um exercício permanente. É a convivência
amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e, ao mesmo tempo, provoca-
os a se assumirem enquanto sujeitos sócios-históricos-culturais do ato de conhecer, é que ele pode
falar do respeito à dignidade e autonomia do educando. Pressupõe romper com concepções e
práticas que negam a compreensão da educação como uma situação gnoseológica. A competência
técnico científica e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu
trabalho, não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas. Essa postura
ajuda a construir o ambiente favorável à produção do conhecimento onde o medo do professor e o
mito que se cria em torno da sua pessoa vão sendo desvalados. É preciso aprender a ser coerente.
De nada adianta o discurso competente se a ação pedagógica é impermeável à mudanças.
No âmbito dos saberes pedagógicos em crise, ao recolocar questões tão relevantes agora quanto
foram na década de 60, Freire, como homem de seu tempo, traduz, no modo lúcido e peculiar,
aquilo que os estudos das ciências da educação vêm apontando nos últimos anos: a ampliação e a
diversificação das fontes legítimas de saberes e a necessária coerência entre o “saber-fazer é o
saber-ser-pedagógicos”.
Num momento de aviamento e de desvalorização do trabalho do professor em todos os níveis, a
pedagogia da autonomia nos apresenta elementos constitutivos da compreensão da prática docente
enquanto dimensão social da formação humana. Para além da redução ao aspecto estritamente
pedagógico e marcado pela natureza política de seu pensamento, Freire, adverte-nos para a
necessidade de assumirmos uma postura vigilante contra todas as práticas de desumanização. Para
tal o saber-fazer da auto reflexão crítica e o saber-ser da sabedoria exercitados permanentemente,
podem nos ajudar a fazer a necessária leitura crítica das verdadeiras causas da degradação humana
e da razão de ser do discurso fatalista da globalização.
Nesse contexto em que o ideário neoliberal incorpora, dentre outras, a categoria da autonomia, é
preciso também atentar para a força de seu discurso ideológico e para as inversões que pode operar
no pensamento e na prática pedagógica ao estimular o individualismo e a competitividade. Como
contraponto, denunciando o mal estar que vem sendo produzido pela ética do mercado, Freire,
anuncia a solidariedade enquanto compromisso histórico de homens e mulheres, como uma das
formas de luta capazes de promover e instaurar a “ética universal do ser humano”. Essa dimensão
utópica tem na pedagogia da autonomia uma de suas possibilidades.
Finalmente, impossível não ressaltar a beleza produzida e traduzida nesta obra. A sensibilidade com
que Freire problematiza e toca o educador aponta para a dimensão estética de sua prática que, por
isso mesmo pode ser movida pelo desejo e vivida com alegria, sem abrir mão do sonho, do rigor, da
seriedade e da simplicidade inerente ao saber-da-competência.
Edina Castro de Oliveira
Mestre em Educação pelo PPCF/DEFS Prof' do Dpto de Fundamentos da Educação e
Orientação Educacional
Vitória, novembro de 1996.
Primeiras Palavras
A questão da formação docente ao lado da reflexão sobre a prática educativo-progressiva em favor
da autonomia do ser dos educandos é a temática central em torno de que gira este texto. Temática a
que se incorpora a análise de saberes fundamentais àquela prática e aos quais espero que o leitor
crítico acrescente alguns que me tenham escapado ou cuja importância não tenha percebido.
Devo esclarecer aos prováveis leitores e leitoras o seguinte: na medida mesma em que esta vem
sendo uma temática sempre presente às minhas preocupações de educador, alguns dos aspectos
aqui discutidos não têm sido estranhos a análises feitas em livros meus anteriores. Não creio, porém,
que a retomada de problemas entre um livro e outro e no corpo de um mesmo livro enfade o leitor.
Sobretudo quando a retomada do tema não é pura repetição do que já foi dito. No meu caso pessoal
retomar um assunto ou tema tem que ver principalmente com a marca oral de minha escrita. Mas
tem que ver também com a relevância que o tema de que falo e a que volto tem no conjunto de
objetos a que direciono minha curiosidade. Tem que ver também com a relação que certa matéria
tem com outras que vêm emergindo no desenvolvimento de minha reflexão. É neste sentido, por
exemplo, que me aproximo de novo da questão da inconclusão do ser humano, de sua inserção num
permanente movimento de procura, que rediscuto a curiosidade ingênua e a crítica, virando
epistemológica. É nesse sentido que reinsisto em que formar é muito mais do que puramente treinar
o educando no desempenho de destrezas e por que não dizer também da quase obstinação com que
falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos homens e às mulheres, assunto de que saio e a
que volto com o gosto de quem a ele se dá pela primeira vez. Daí a crítica permanentemente
presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa
inflexível ao sonho e à utopia.
Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que
são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum interesse de, não importa que
ordem, assumir um ar de observador imparcial, objetivo, seguro, dos fatos e dos acontecimentos.
Em tempo algum pude ser um observador “acizentadamente” imparcial, o que, porém, jamais me
afastou de uma posição rigorosamente ética. Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que
não situa o observador em erro. O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas
absolutizá-la e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista é possível que a razão ética
nem sempre esteja com ele.
O meu ponto de vista é o dos “condenados da Terra”, o dos excluídos. Não aceito, porém, em nome
de nada, ações terroristas, pois que delas resultam a morte de inocentes e a insegurança de seres
humanos. O terrorismo nega o que venho chamando de ética universal do ser humano. Estou com os
árabes na luta por seus direitos mas não pude aceitar a malvadez do ato terrorista nas Olimpíadas
de Munique.
Gostaria, por outro lado, de sublinhar a nós mesmos, professores e professoras, a nossa
responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa docente. Sublinhar esta responsabilidade
igualmente àquelas e àqueles que se acham em formação para exercê-la. Este pequeno livro se
encontra cortado ou permeado em sua totalidade pelo sentido da necessária eticidade que conota
expressivamente a natureza da prática educativa, enquanto prática formadora. Educadores e
educandos não podemos, na verdade, escapar à rigorosidade ética. Mas, é preciso deixar claro que a
ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do
lucro. Em nível internacional começa a aparecer uma tendência em acertar os reflexos cruciais da
‘nova ordem mundial’, como naturais e inevitáveis. Num encontro internacional de ONGs, um dos
expositores afirmou estar ouvindo com certa freqüência em países do Primeiro Mundo a idéia de que
crianças do Terceiro Mundo, acometidas por doenças como diarréia aguda, não deveriam ser salvas,
pois tal recurso só prolongaria uma vida já destinada à miséria e ao sofrimento.”* Não falo,
obviamente, desta ética. Falo, pelo contrário, da ética universal do ser humano. Da ética que
condena o cinismo do discurso citado acima, que condena a exploração da força de trabalho do ser
humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B,
falsear a verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer
sabendo que não cumprirá a promessa, testemunhar mentirosamente, falar mal dos outros pelo
*
A fala dos Excluídos em Cadernos Cede, 38. GARCIA, Regina L., VALLA Vícotr V., 1996.
gosto de falar mal. A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos
grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é
a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta
ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com
adultos, que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática, é
testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com eles. Na maneira como lidamos com
os conteúdos que ensinamos, no modo como citamos autores de cuja obra discordamos ou com cuja
obra concordamos. Não podemos basear nossa crítica a um autor na leitura feita por cima de uma ou
outra de suas obras. Pior ainda, tendo lido apenas a crítica de quem só leu a contracapa de um de
seus livros.
Posso não aceitar a concepção pedagógica deste ou daquela autora e devo inclusive expor aos alunos
as razões por que me oponho a ela mas, o que não posso, na minha crítica, é mentir. É dizer
inverdades em torno deles. O preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua
retidão ética. É uma lástima qualquer descompasso entre aquela e esta. Formação científica,
correção ética, respeito aos outros, coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente,
não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relação ao outro nos façam
acusá-lo do que não fez são obrigações a cujo cumprimento devemos humilde mas
perseverantemente nos dedicar.
É não só interessante mas profundamente importante que os estudantes percebam as diferenças de
compreensão dos Faros, as posições às vezes antagônicas entre professores na apreciação dos
problemas e no equacionamento de soluções. Mas é fundamental que percebam o respeito e a
lealdade com que um professor analisa e critica as posturas dos outros.
De quando em vez, ao longo deste texto, volto a este tema. É que me acho absolutamente
convencido da natureza ética da prática educativa, enquanto prática especificamente humana. É que,
por outro lado, nos achamos, ao nível do mundo e não apenas do Brasil, de tal maneira submetidos
ao comando da malvadez da ética do mercado, que me parece ser pouco tudo o que façamos na
defesa e na prática da ética universal do ser humano. Não podemos nos assumir como sujeitos da
procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser
assumindo-nos como sujeitos éticos. Neste sentido, a transgressão dos princípios éticos é uma
possibilidade mas não é uma virtude. Não podemos aceitá-la.
Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto á transgressão da ética.
Uma de nossas brigas na História, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos
em favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. Mas,
faz parte igualmente desta luta pela eticidade recusar, com segurança, as críticas que vêem na
defesa da ética, precisamente a expressão daquele moralismo criticado. Em mim a defesa da ética
jamais significou sua distorção ou negação.
Quando, porém, falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da
natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana. Ao fazê-lo
estou advertido das possíveis críticas que, infiéis a meu pensamento, me apontarão como ingênuo e
idealista. Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua
vocação ontológica para o ser mais, como falo de sua natureza constituindo-se social e
historicamente não como um “a priori” da História. A natureza que a ontologia cuida se gesta
socialmente na História. É uma natureza em processo de estar sendo com algumas conotações
fundamentais sem as quais não teria sido possível reconhecer a própria presença humana no mundo
como algo original e singular. Quer dizer, mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou
uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra
presença como um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que
se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha,
que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da
avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a
responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma
virtude.
Na verdade, seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já
a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Como presença consciente
no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. Se sou puro
produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no
mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética. Isto não significa
negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa
reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História é
tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático
e não inexorável.
Devo enfatizar também que este é um livro esperançoso, um livro otimista, mas não ingenuamente
construído de otimismo falso e de esperança vã. As pessoas, porém, inclusive de esquerda, para
quem o futuro perdeu sua problematicidade – o futuro é um dado dado – dirão que ele é mais um
devaneio de sonhador inveterado.
Não tenho raiva de quem assim pensa. Lamento apenas sua posição: a de quem perdeu seu
endereço na História.
A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares
de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que,
de histórica e cultural, passa a ser ou a virar “quase natural”. Frases como “a realidade é assim
mesmo, que podemos fazer?” ou “o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século”
expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora. Do ponto de
vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade
que não pode ser mudada. O de que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à
adaptação do educando, à sua sobrevivência. O livro com que volto aos leitores é um decisivo não a
esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente.
De uma coisa, qualquer texto necessita: que o leitor ou a leitora a ele se entregue de forma crítica,
crescentemente curiosa. É isto o que este texto espera de você, que acabou de ler estas “Primeiras
Palavras”.
Paulo Freire
São Paulo
Setembro de 1996
Capítulo 1
Não há docência sem discência
Devo deixar claro que, embora seja meu interesse central considerar neste texto saberes que me
parecem indispensáveis à prática docente de educadoras ou educadores críticos, progressistas,
alguns deles são igualmente necessários a educadores conservadores. São saberes demandados pela
prática educativa em si mesma, qualquer que seja a opção política do educador ou educadora.
Na continuidade da leitura vai cabendo ao leitor ou leitora o exercício de perceber se este ou aquele
saber referido corresponde à natureza da prática progressista ou conservadora ou se, pelo contrário,
é exigência da prática educativa mesma independentemente de sua cor política ou ideológica. Por
outro lado, devo sublinhar que, de forma não-sistemática, tenho me referido a alguns desses saberes
em trabalhos anteriores. Estou convencido, porém, é legítimo acrescentar, da importância de uma
reflexão como esta quando penso a formação docente e a prática educativo-crítica.
O ato de cozinhar, por exemplo, supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão, como acendêlo,
como equilibrar para mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos mesmo remotos
de incêndio, como harmonizar os diferentes temperos numa síntese gostosa e atraente. A prática de
cozinhar vai preparando o novato, ratificando alguns daqueles saberes, retificando outros, e vai
possibilitando que ele vire cozinheiro. A prática de velejar coloca a necessidade de saberes fundantes
como o do domínio do barco, das partes que o compõem e da função de cada uma delas, como o
conhecimento dos ventos, de sua força, de sua direção, os ventos e as velas, a posição das velas, o
papel do motor e da combinação entre motor e velas. Na prática de velejar se confirmam, se
modificam ou se ampliam esses saberes.
A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a
teoria pode ir virando blablablá e a prática, ativismo.
O que me interessa agora, repito, é alinhar e discutir alguns saberes fundamentais à prática
educativo-crítica ou progressista e que, por isso mesmo, devem ser conteúdos obrigatórios à
organização programática da formação docente. Conteúdos cuja compreensão, tão clara e tão lúcida
quanto possível, deve ser elaborada na prática formadora. É preciso, sobretudo, e aí já vai um
destes saberes indispensáveis, que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência
formadora, assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente
de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a
sua construção.
Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o
formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto, que ele é o sujeito que me forma e
eu, o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentosconteúdos-
acumulados pelo sujeito que sabe e que são a mim transferidos. Nesta forma de
compreender e de viver o processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me
tornar o falso sujeito da “formação” do futuro objeto de meu ato formador. É preciso que, pelo
contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes
entre si, quem forma se forma e re-forma ao for-mar e quem é formado forma-se e forma ao ser
formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem forrar é ação
pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há
docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam,
não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem
aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém. Por isso é que, do ponto
de vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo transitivo-relativo. Verbo que pede um objeto direto
– alguma coisa – e um objeto indireto – a alguém. Do ponto de vista democrático em que me situo,
mas também do ponto de vista da radicalidade metafísica em que me coloco e de que decorre minha
compreensão do homem e da mulher como seres históricos e inacabados e sobre que se funda a
minha inteligência do processo de conhecer, ensinar é algo mais que um verbo transitivo-relativo.
Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente,
mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que
ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar
maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras,
ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. Não temo dizer que inexiste
validade no ensino de que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz de
recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não foi apreendido não pode ser realmente
aprendido pelo aprendiz.
Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma
experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a
boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade.
Às vezes, nos meus silêncios em que aparentemente me perco, desligado, flutuando quase, penso na
importância singular que vem sendo para mulheres e homens sermos ou nos termos tornado, como
constata François Jacob, “seres programados, mas, para aprender”*. É que o processo de aprender,
em que historicamente descobrimos que era possível ensinar como tarefa não apenas embutida no
aprender, mas perfilada em si, com relação a aprender, é um processo que pode deflagrar no
aprendiz uma curiosidade crescente, que pode torná-la mais e mais criador. O que quero dizer é o
seguinte: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e
desenvolve o que venho chamando “curiosidade epistemológica”**, sem a qual não alcançamos o
conhecimento cabal do objeto.
É isto que nos leva, de um lado, à crítica e à recusa ao ensino “bancário”***, de outro, a compreender
que, apesar dele, o educando a ele submetido não está fadado a fenecer; em que pese o ensino
"bancário”, que deforma a necessária criatividade do educando e do educador, o educando a ele
sujeitado pode, não por causa do conteúdo cujo “conhecimento” lhe foi transferido, mas por causa
do processo mesmo de aprender, dar, como se diz na linguagem popular, a volta por cima e superar
o autoritarismo e o erro epistemológico do “bancarismo”.
O necessário é que, subordinado, embora, à prática “bancária”, o educando mantenha vivo em si o
gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de
aventurar-se, de certa forma o “imuniza” contra o poder apassivador do "bancarismo". Neste caso, é
a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida
rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar.
Esta é uma das significativas vantagens dos seres humanos – a de se terem tornado capazes de ir
mais além de seus condicionantes. Isto não significa, porém, que nos seja indiferente ser um
educador “bancário” ou um educador “problematizador”.
1.1 – Ensinar exige rigorosidade metódica
O educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a
capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão. Uma de suas tarefas primordiais é
trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos objetos
cognoscíveis. E esta rigorosidade metódica não tem nada que ver com o discurso “bancário”
meramente transferidor do perfil do objeto ou do conteúdo. É exatamente neste sentido que ensinar
não se esgota no “tratamento” do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à
produção das condições em que aprender criticamente é possível. E essas condições implicam ou
exigem a presença de educadores e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente
curiosos, humildes e persistentes. Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível
a pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou continua tendo experiência
da produção de certos saberes e que estes não podem a eles, os educandos, ser simplesmente
transferidos. Pelo contrário, nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se
transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do
educador, igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar realmente de saber ensinado, em
que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto, aprendido pelos educandos.
*
Jacob, François. Nous Sommes Programmés, mais pour apprendre. Le Courrier, UNESCO, fevereiro,
1991.
**
FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo, Olho d’água, 1995.
***
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Percebe-se, assim, a importância do papel do educador, o mérito da paz com que viva a certeza de
que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar
certo. Daí a impossibilidacìe de vir a tornar-se um professor crítico se, mecanicamente memorizador,
é muito mais um repetidor cadenciado de frases e de idéias inertes do que um desafiador. O
intelectual memorizador, que lê horas a fio, domesticando-se ao texto, temeroso de arriscar-se, fala
de suas leituras quase como se estivesse recitando-as de memória – não percebe, quando realmente
existe, nenhuma relação entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país, na sua cidade, no seu
bairro. Repete o lido com precisão mas raramente ensaia algo pessoal. Fala bonito de dialética mas
pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os livros todos a cuja leitura dedica tempo farto
nada devessem ter com a realidade de seu mundo. A realidade com que eles têm que ver é a
realidade idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais um dado aí, desconectado do
concreto.
Não se lê criticamente como se fazê-lo fosse a mesma coisa que comprar mercadoria por atacado.
Ler vinte livros, trinta livros. A leitura verdadeira me compromete de imediato com o texto que a
mim se dá e a que me dou e de cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito.
Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela produção apenas de
seu autor ou de sua autora. Esta forma viciada de ler não tem nada que ver, por isso mesmo, com o
pensar certo e com o ensinar certo.
Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a
pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de
nossas certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante
do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, me parece inconciliável com a
desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo.
O professor que pensa certo deixa transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa
maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no
mundo, conhecer o mundo. Mas, histórico como nós, o nosso conhecimento do mundo tem
historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho
e se “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã*. Daí que seja tão fundamental conhecer o
conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento
ainda não existente. Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo
gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a
produção do conhecimento ainda não existente. A "do-discência” – docência-discência – e a
pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas requeridas por estes momentos do ciclo gnosiológico.
1.2 – Ensinar exige pesquisa
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino**. Esses que-fazeres se encontram um no corpo
do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei,
porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e
me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.
Pensar certo, em termos críticos, é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico vão pondo
à curiosidade que, tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, transita da ingenuidade para o
que venho chamando “curiosidade epistemológica”. A curiosidade ingênua, do que resulta
indiscutivelmente um certo saber, não importa que metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza
o senso comum. O saber de pura experiência feito. Pensar certo, do ponto de vista do professor,
tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito
e o estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso da educadora com a
consciência crítica do educando cuja “promoção” da ingenuidade não se faz automaticamente.
*
A esse propósito, Ver Vieira Pinto Álvaro, Ciência e Existência. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.
**
Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de
pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à
de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se
precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor,
como pesquisador.
1.3 – Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos
Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só
respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classes populares, chegam a ela –
saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas também, como há mais de trinta anos
venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o
ensino dos conteúdos. Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da
cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos
córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde
das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos
centros urbanos? Esta pergunta é considerada em si demagógica e reveladora da má vontade de
quem a faz. É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia.
Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo
conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das
pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma necessária
“intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles
têm como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso
dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque,
dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola
não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferí-los aos alunos. Aprendidos, estes operam
por si mesmos.
1.4 – Ensinar exige criticidade
Não há para mim, na diferença e na “distância” entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de
pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura,
mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua,
sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao
criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente
“rigorizando-se” na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão.
Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”, está associada ao saber do senso comum, é a
mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente
rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. iluda de qualidade mas não de
essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao longo de minha experiência
político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência das injustiças, é a mesma
curiosidade, enquanto abertura mais ou menos espancada diante de “não-eus”, com que cientistas
ou filósofos acadêmicos “admiram” o mundo. Os cientistas e os filósofos superam, porém, a
ingenuidade da curiosidade do camponês e se tornam epistemologicamente curiosos.
A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como
pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere
alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos
move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a
ele algo que fazemos.
Como manifestação presente à experiência vital, a curiosidade humana vem sendo histórica e
socialmente construída e reconstruída. Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a
criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista
é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. Curiosidade com que
podemos nos defender de “irracionalismos” decorrentes ou produzidos por certo excesso de
“racionalidade” de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração de quem, de
um lado, não diviniza a tecnologia, mas de outro a diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita
de forma criticamente curiosa.
1.5 – Ensinar exige estética e ética
A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de
uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência boniteza de mãos dadas. Cada
vez me convenço mais de que, desperta com relação à possibilidade de enveredar-se no descaminho
do puritanismo, a prática educativa tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decência e de
pureza. Uma crítica permanente aos desvios fáceis com que somos tentados, às vezes ou quase
sempre, a deixar as dificuldades que os caminhos verdadeiros podem nos colocar. Muheres e
homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de
escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos
sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe,
sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e
homens é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência em puro treinamento técnico
é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter
formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio
à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a
tecnologia* ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado. De
testemunhar aos alunos, às vezes com ares de quem possui a verdade, rotundo desacerto. Pensar
certo, pelo contrário, demanda profundidade e não superficialidade compreensão e na interpretação
dos fatos. Supõe a disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a possibilidade de
mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-la. Mas como não há pensar certo à margem
de princípios éticos, se mudar é uma possibilidade e um direito, cabe a quem muda – exige o pensar
certo – que assuma a mudança operada. Do ponto de vista do pensar certo não é possível mudar e
fazer de conta que não mudou. É que todo pensar certo é radicalmente coerente.
1.6 – Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo
O professor que realmente ensina, quer dizer, que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade
do pensar certo, nega, como falsa, a fórmula farisaica do “faça o que mando e não o que eu faço”.
Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo
pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo.
Que podem pensar alunos sérios de um professor que, há dois semestres, falava com quase ardor
sobre a necessidade da luta pela autonomia das classes populares e hoje, dizendo que não mudou,
faz o discurso pragmático contra os sonhos e pratica a transferência de saber do professor para o
aluno?! Que dizer da professora que, de esquerda ontem, defendia a formação da classe
trabalhadora e que, pragmática hoje, se satisfaz, curvada ao fatalismo neoliberal, com o puro
treinamento do operário, insistindo, porém, que é progressista?
Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo. Não é
possível ao professor pensar que pensa certo mas ao mesmo tempo perguntar ao aluno se “sabe
com quem está falando”.
O clima de quem pensa certo é o de quem busca seria-mente a segurança na argumentação, é o de
quem, discordando do seu oponente não tem por que contra ele ou contra ela nutrir uma raiva
desmedida, bem maior, às vezes, do que a razão mesma da discordância. Uma dessas pessoas
desmedidamente raivosas proibiu certa vez estudante que trabalhava dissertação sobre alfabetização
e cidadania que me lesse. “Já era”, disse com ares de quem trata com rigor e neutralidade o objeto,
que era eu. “Qualquer leitura que você faça deste senhor pode prejudicá-la”. Não é assim que se
pensa certo nem é assim que se ensina certo**. Faz parte do pensar certo o gosto da generosidade
que, não negando a quem o tem o direito à raiva, a distingue da raivosidade irrefreada.
*
A este propósito ver Postman, Neil. Technopoly -The Surrender of Culture to Technology, Nova
York, Alfred A. Knopf, 1992
**
Ver FREIRE, Paulo, Cartas a Cristina. Paz e Terra, 1995, Décima Sexta Carta, p. 207.
1.7 – Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação
É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou
acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O
velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo
continua novo.
Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A
prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega
radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que
matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que
discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres. Quão ausentes da democracia se acham os
que queimam igrejas de negros porque, certamente, negros não têm alma. Negros não rezam. Com
sua negritude, os negros sujam a branquitude das orações... A mim me dá pena e não raiva, quando
vejo a arrogância com que a branquitude de sociedades em que se faz isso, em que se queimam
igrejas de negros, se apresenta ao mundo como pedagoga da democracia. Pensar e fazer errado,
pelo visto, não têm mesmo nada que ver com a humildade que o pensar certo exige. Não têm nada
que ver com o bom senso que regula nossos exageros e evita as nossas caminhadas até o ridículo e
a insensatez.
Às vezes, temo que algum leitor ou leitora, mesmo que ainda não totalmente convertido ao
“pragmatismo” neoliberal mas por ele já tocado, diga que, sonhador, continuo a falar de uma
educação de anjos e não de mulheres e de homens. O que tenho dito até agora, porém, diz respeito
radicalmente à natureza de mulheres e de homens. Natureza entendida como social e historicamente
constituindo-se e não como um “a priori” da História*.
O problema que se coloca para mim é que, compreendendo como compreendo a natureza humana,
seria uma contradição grosseira não defender o que venho defendendo. Faz parte da exigência que a
mim mesmo me faço de pensar certo, pensar como venho pensando enquanto escrevo este texto.
Pensar, por exemplo, que o pensar certo a ser ensinado concomitantemente com o ensino dos
conteúdos não é um pensar formalmente anterior ao e desgarrado do fazer certo. Neste sentido é
que ensinar a pensar certo não é uma experiência em que ele – o pensar certo – é tomado em si
mesmo e dele se fala ou uma prática que puramente se descreve, mas algo que se faz e que se vive
enquanto dele se fala com a força do testemunho. Pensar certo implica a existência de sujeitos que
pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos. Pensar certo
não é que – fazer de quem se isola, de quem se “aconchega” a si mesmo na solidão, mas um ato
comunicante. Não há por isso mesmo pensar sem entendimento e o entendimento, do ponto de vista
do pensar certo, não é transferido mas co-participado. Se, do ângulo da gramática, o verbo entender
é transitivo no que concerne à “sintaxe” do pensar certo ele é um verbo cujo sujeito é sempre copartícipe
de outro. Todo entendimento, se não se acha “trabalhado” mecanicistamente, se não vem
sendo submetido aos “cuidados” alienadores de um tipo especial e cada vez mais ameaçadoramente
comum de mente que venho chamando "burocratizada”, implica, necessariamente, comunicabilidade.
Não há inteligência – a não ser quando o próprio processo de inteligir é distorcido – que não seja
também comunicação do inteligido. A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir,
depositar, oferecer, do¿r ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a intelegibilidade das
coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como
ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem
comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado. Não há intelegibilidade que
não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por
isso é dialógico e não polêmico.
1.8 – Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática
O pensar certo sabe, por exemplo, que não é a partir dele como um dado dado, que se conforma a
prática docente crítica, mas sabe também que sem ele não se funda aquela. A prática docente
crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar
sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, “desarmada”,
*
Freire, Paulo, Pedagogia da Esperança. Paz e Terra, 1994.
indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a
rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. Este não é o saber
que a rigorosidade do pensar certo procura. Por isso, é fundamental que, na prática da formação
docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos
deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro
do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo
próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. E preciso, por outro lado, reinsistir em
que a matriz do pensar ingênuo como a do crítico é a curiosidade mesma, característica do fenômeno
vital. Neste sentido, indubitavelmente, é tão curioso o professor chamado leigo no interior de
Pernambuco quanto o professor de Filosofia da Educação na Universidade A ou B. O de que se
precisa é possibilitar, que, voltando-se sobre si mesma, através da reflexão sobre a prática, a
curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica.
Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão
crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de ou de ontem que se pode melhorar a
próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo
concreto que quase se confunda com a prática. O seu “distanciamento” epistemológico da prática
enquanto objeto de sua análise, deve dela “aproximá-lo” ao máximo. Quanto melhor faça esta
operação tanto mais inteligência ganha da prática em análise e maior comunicabilidade exerce em
torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, quanto mais me assumo como
estou sendo e percebo a ou as razões de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de
mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade
epistemológica. Não é possível a assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo
sem a disponibilidade para mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito
também.
Seria porém exagero idealista, afirmar que a assunção, por exemplo, de que fumar ameaça minha
vida, já significa deixar de fumar. Mas deixar de fumar passa, em algum sentido, pela assunção do
risco que corro ao fumar. Por outro lado, a assunção se vai fazendo cada vez mais assunção na
medida em que ela engendra novas opções, por isso mesmo em que ela provoca ruptura, decisão e
novos compromissos. Quando assumo o mal ou os males que o cigarro me pode causar, movo-me
no sentido de evitar os males. Decido, rompo, opto. Mas, é na prática de não fumar que a assunção
do risco que corro por fumar se concretiza materialmente.
Me parece que há ainda um elemento fundamental na assunção de que falo: o emocional. Além do
conhecimento que tenho do mal que o fumo me faz, tenho agora, na assunção que dele faço,
legítima raiva do fumo. E tenho também a alegria de ter tido a raiva que, no fundo, ajudou que eu
continuasse no mundo por mais tempo. Está errada a educação que não reconhece na justa raiva,*
na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a
exploração e a violência um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os
limites que a confirmam, perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em
odiosidade.
1.9 – Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural
É interessante estender mais um pouco a reflexão sobre a assunção. O verbo assumir é um verbo
transitivo e que pode ter como objeto o próprio sujeito que assim se assume. Eu tanto assumo o
risco que corro ao fumar quanto me assumo enquanto sujeito da própria assunção. Deixemos claro
que, quando digo ser fundamental para deixar de fumar a assunção de que fumar ameaça minha
vida, com assunção eu quero sobretudo me referir ao conhecimento cabal que obtive do fumar e de
suas conseqüências. Outro sentido mais radical tem a assunção ou assumir quando digo: Uma das
tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos
em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência
profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante,
*
A de Cristo contra os vendilhões do Templo. A dos progressistas contra os inimigos da reforma
agrária, a dos ofendidos contra a violência de toda discriminação, de classe, de raça, de gênero. A
dos injustiçados contra a impunidade. A de quem tem fome contra a forma luxuriosa com que
alguns, mais do que comem, esbanjam e transformam a vida num desfrute.
transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se
como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa
a exclusão dos outros. É a “outredade" do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de
meu eu.
A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos
educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema
que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos. É
isto que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-se e perdendo-o na estreita e
pragmática visão do processo.
A experiência histórica, política, cultural e social os homens e das mulheres jamais pode se dar
“virgem” do conflito entre 'as forças que obstaculizam a busca da assunção de si por parte dos
indivíduos e dos grupos e das forças que trabalham em favor daquela assunção. A formação docente
que se julgue superior a essas “intrigas” não faz outra coisa senão trabalhar em favor dos
obstáculos. A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia
e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma
prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o
treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do
saber articulado.
Às vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto do
professor. O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como força formadora ou como
contribuição à do educando por si mesmo. Nunca me esqueço, na história já longa de minha
memória, de um desses gestos de professor que tive na adolescência remota. Gesto cuja significação
mais profunda talvez tenha passado despercebida por ele, o professor, e que teve importante
influência sobre mim. Estava sendo, ermo, um adolescente inseguro, vendo-me como um corpo
anguloso e feio, percebendo-me menos capaz do que os outros, fortemente incerto de minhas
possibilidades. Era muito mais mal-humorado que apaziguado com a vida. Facilmente me eriçava.
Qualquer consideração feita por um colega rico da classe já me parecia o chamamento à atenção de
minhas fragilidades, de minha insegurança.
O professor trouxera de casa os nossos trabalhos escolares e, chamando-nos um a um, devolvia-os
com o seu ajuizamento. Em certo momento me chama e, olhando ou re-olhando o meu texto, sem
dizer palavra, balança a cabeça numa demo nstração de respeito e de consideração. O gesto do
professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu à minha redação. O gesto do professor
me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que era possível trabalhar e produzir. De
que era possível confiar em mim mas que seria tão errado confiar além dos limites quanto errado
estava sendo não confiar. A melhor prova da importância daquele gesto é que dele falo agora como
se tivesse sido testemunhado hoje. E faz, na verdade, muito tempo que ele ocorreu...
Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas do espaço
escolar, é algo sobre que teríamos de refletir seriamente. É uma pena que o caráter socializante da
escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou deformação, seja
negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino lamentavelmente
quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma das razões que explicam este
descaso em torno do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não seja a atividade ensinante,
vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender. No fundo, passa
despercebido a nós que foi aprendendo socialmente que mulheres e homens, historicamente,
descobriram que é possível ensinar. Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos
ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas
ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios*, em que
*
Esta é uma preocupação fundamental da equipe coordenada pelo professor Miguel Arroio e que
vem propondo ao país, em Belo Horizonte, uma das melhores re-invenções da escola. É uma lástima
que não tenha havido ainda uma emissora de TV que se dedicasse a mostrar experiências como a de
Belo Horizonte, a de Uberaba, a de Porto Alegre, a do Recife e de tantas outras espalhadas pelo
Brasil. Que se propusesse revelar práticas criadoras de gente que se arrisca, vividas em escolas
variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de
significação. Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas.
Em A Educação na cidade* chamei a atenção para esta importância quando discuti o estado em que a
administração de Luiza Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São Paulo em 1989. O
descaso pelas condições materiais das escolas alcançava níveis impensáveis. Nas minhas primeiras
visitas à rede quase devastada eu me perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínino
de respeito às carteiras escolares, à mesas, às paredes se o Poder Público revela absoluta
desconsideração à coisa pública? É incrível que não imaginemos a significação do “discurso”
formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloqüência do discurso “pronunciado” na e
pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas flores que adornam. Há
uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço.
Pormenores assim da cotidianeidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que quase
sempre pouca ou nenhuma atenção se dá, têm na verdade um peso significativo na avaliação da
experiência docente. O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto,
este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da
insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser “educado”, vai gerando a coragem.
Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do exercício da
criticidade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e do outro,
sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou
adivinhação. Conhecer não é, de fato, adivinhar, mas tem algo que ver, de vez em quando, com
adivinhar, com intuir. O importante, não resta dúvida, é não pararmos satisfeitos ao nível das
intuições, mas submetê-las à análise metodicamente rigorosa de nossa curioridade epistemológica*
privadas ou públicas. Programa que poderia chamar-se mudar é difícil mas é possível. No fundo, um
dos saberes fundamentais à prática educativa.
*
Não é possível também formação docente indiferente à boniteza e à decência que estar no mundo,
com o mundo e com os oucros, substantivamente, exige de nós. Não há prática docente verdadeira
que não seja ela mesma um ensaio estético e ético, permita-se-me a repetição.
Capítulo 2
Ensinar não é transferir conhecimento
As considerações ou reflexões até agora feitas vêm sendo desdobramentos de um primeiro saber
inicialmente apontado como necessário à formação docente, numa perspectiva progressista. Saber que
ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua
construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à
curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da
tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir conhecimento.
É preciso insistir: este saber necessário ao professor – que ensinar não é transferir conhecimento – não
apenas precisa de ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser – ontológica, política,
ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa de ser constantemente testemunhado, vivido.
Como professor num curso de formação docente não posso esgotar minha prática discursando sobre a
Teoria da não extensão do conhecimento. Não posso apenas falar bonito sobre as razões ontológicas,
epistemológicas e políticas da Teoria. O meu discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo concreto, prático,
da teoria. Sua encarnação. Ao falar da construção do conhecimento, criticando a sua extensão, já devo
estar envolvido nela, e nela, a construção, estar envolvendo os alunos.
Fora disso, me emaranho na rede das contradições em que meu testemunho, inautêntico, perde eficácia.
Me torno tão falso quanto quem pretende estimular o clima democrático na escola por meios e caminhos
autoritários. Tão fingido quanto quem diz combater o racismo mas, perguntado se conhece Madalena, diz:
“Conheço-a. É negra mas é competente e decente.” Jamais ouvi ninguém dizer que conhece Célia, que ela
é loura, de olhos azuis, mas é competente e decente. No discurso perfilador de Madalena, negra, cabe a
conjunção adversativa mas; no que contorna Célia, loura de olhos azuis, a conjunção adversativa é um
não-senso. A compreensão do papel das conjunções que, ligando sentenças entre si, impregnam a relação
que estabelecem de certo sentido, o de causalidade, falo porque recuso o silêncio, o de adversidade,
tentaram dominá-la mas não conseguiram, o de finalidade, Pedro lutou para que ficasse clara a sua
posição, o de integração, Pedro sabia que ela voltaria, não é suficiente para explicar o uso da adversativa
mas na relação entre a sentença Madalena é negra e Madalena é competente e decente. A conjunção mas
aí, implica um juízo falso, ideológico: sendo negra, espera-se que Madalena nem seja competente nem
decente. Ao reconhecer-se, porém, sua decência e sua competência a conjunção mas se tornou
indispensável. No caso de Célia, é um disparate que, sendo loura de olhos azuis não seja competente e
decente. Daí o não-senso da adversativa. A razão é ideológica e não gramatical.
Pensar certo – e saber que ensinar não é transferir conhecimento é fundamentalmente pensar certo – é
uma postura exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante dos outros e com os outros,
em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil, não porque pensar certo seja forma própria de
pensar de santos e de anjos e a que nós arrogantemente aspirássemos. É difícil, entre outras coisas, pela
vigilância constante que temor de exercer sobre nós próprios para evitar os simplismos as facilidades, as
incoerências grosseiras. É difícil porque nem sempre temos o valor indispensável para não permitir que a
raiva que podemos ter de alguém vire raivosidade que gera um pensar errado e falso. Por mais que me
desagrade uma pessoa não posso menosprezá-la com um discurso em que, cheio de mim mesmo, decreto
sua incompetência absoluta. Discurso em que, cheio de mim mesmo trato-a com desdém, do alto de
minha falsa superioridade. A mim não me dá raiva mas pena quando pessoas assim raivosas, arvoradas
em figuras de gênio, me minimizam e destratam.
É cansativo, por exemplo, viver a humildade, condição “sine qua” do pensar certo, que nos faz proclamar
o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e anunciar a superação que sofremos.
O clima do pensar certo não tem nada que ver com o das fórmulas preestabelecidas, mas seria a negação
do pensar certo se pretendêssemos forjá-lo na atmosfera da licenciosidade ou do espontaneísmo. Sem
rigorosidade metódica não há pensar cerco.
2.1 – Ensinar exige consciência do inacabamento
Como professor crítico, sou um “aventureiro” responsável, predisposto à mudança, à aceitação do
diferente. Nada do que experimentei em minha atividade docente deve necessariamente repetir-se.
Repito, porém, como inevitável, a franquia de mim mesmo, radical, diante dos outros e do mundo. Minha
franquia ante os outros e o mundo mesmo é a maneira radical como me experimento enquanto ser
cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento.
Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na
verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há
inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente. A invenção da
existência a partir dos materiais que a vida oferecia levou homens e mulheres a promover o suporte em
que os outros animais continuam, em mundo. Seu mundo, mundo dos homens e das mulheres. A
experiência humana no mundo muda de qualidade com relação à vida animal no suporte. O suporte é o
espaço, restrito ou alongado, que o animal se prende “afetivamente” tanto quanto para, resistir; e o
espaço necessário a seu crescimento e que delimita seu domínio. É o espaço em que, treinado, adestrado,
“aprende” a sobreviver, a caçar, a atacar, a defender-se nutri tempo de dependência dos adultos
imensamente menor do que é necessário ao ser humano para as mesmas coisas. Quanto mais cultural é o
ser maior a sua infância, sua dependência de cuidados especiais. Faltam ao “movimento” dos outros
animais no suporte a linguagem conceitual, a inteligibilidade do próprio suporte de que resultaria
inevitavelmente a comunicabilidade do inteligido, o espanto diante da vida mesma, do que há nela de
mistério. No suporte, os comportamentos dos indivíduos têm sua explicação muito mais na espécie a que
pertencem os indivíduo do que neles mesmos. Falta-lhes liberdade de opção. Por isso, não se fala em
ética entre os elefantes.
A vida no suporte não implica a linguagem nem a postura erecta que permitiu a liberação das mãos*.
Mãos que, em grande medida, nos fizeram. Quanto maior se foi tornando a solidariedade entre mente e
mãos, tanto mais o suporte foi virando mundo e a vida, existência. O suporte veio fazendo-se mundo e a
vida, existêmia, na proporção que o corpo humano vira corpo consciente, captador, apreendedor,
transformador, criador de beleza e não “espaço” vazio a ser enchido por conteúdos.
A invenção da existência envolve, repita-se, necessariamente, a linguagem, a cultura, a comunicação em
níveis mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no domínio da vida, a “espiritualização”
do mundo, a possibilidade de embelezar como de enfear o mundo e tudo isso inscreveria mulheres e
homens como seres éticos. Capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper,
de escolher, capazes de grandes ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes também de
impensáveis exemplos de baixeza e de indignidade. Só os seres que se tornaram éticos podem romper
com a ética. Não se sabe de leões que covardemente tenham assassinado leões do mesmo ou de outro
grupo familiar e depois tenham visitado os “familiares” para levar-lhes sua solidariedade. Não se sabe de
tigres africanos que tenham jogado bombas altamente destruidoras em “cidades” de tigres asiáticos.
No momento em que os seres humanos, intervindo no suporte, foram criando o mundo, inventando a
linguagem com que passaram a dar nome às coisas que faziam com a ação sobre o mundo, na medida em
que se foram habilitando a inteligir o mundo e criaram por conseqüências a necessária comunicabilidade
do inteligido, já não foi possível existir a não ser disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o
mal, entre a dignidade e a indignidade, entre a decência e o despudor, entre a boniteza e s feiúra do
mundo. Quer dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, dr lutar,
de fazer política. E tudo isso nos traz de novo à imperiosidade da prática formadora, de natureza
eminentemente ética. E tudo isso nos traz de novo à radicalidade da esperança. Sei que as coisas podem
até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las.
Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou
serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os
outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda
e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é
predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado mas algo que precisa ser feito e dr
cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os
outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista
tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade.
*
Ver: The Cambridge Encyclopedia of Language. Crystal, Davi', Cambridge, Cambridge University Press,
1987.
2.2 – Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado
Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do
inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o
ser determinado. A diferença entre o inacabado que não se sabe como tal e o inacabado que histórica e
socialmente alcançou a possibilidade de saber-se inacabado. Gosto de ser gente porque, como tal,
percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta òa
influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o
que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. Seria irônico se a consciência
de minha presença no mundo não implicasse já o reconhecimento da impossibilidade de minha ausência
na construção da própria presença. Não posso me perceber como uma presença no mundo mas, ao
mesmo tempo, explicá-la como resultado de operações absolutamente alheias a mim. Neste caso o que
faço é renunciar à responsabilidade ética, histórica, política e social que a promoção do suporte a mundo
nos coloca. Renuncio a participar a cumprir a vocação ontológica de intervir o mundo. O fato de me
perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de
quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta mas a
de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da
História.
Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas,
culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o
cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se
eternizam.
Nos anos 60, preocupado já com esses obstáculos, apelei para a conscientização não como panacéia, mas
como um esforço de conhecimento crítico dos obstáculos, vale dizer, de suas razões de ser. Contra toda a
força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto hoje, sem desvios idealistas, na
necessidade da conscientização. Insisto na sua atualização. Na verdade, enquanto aprofundamento da
“prise de conscience” do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, a conscientização é exigência humana, é
um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade epistemológica. Em lugar de estranha, a
conscientização é natural ao ser que, inacabado, se sabe inacabado. A questão substantiva não está por
isso no puro inacabamento ou na pura inconclusão. A inconclusão, repito, faz parte da natureza do
fenômeno vital. Inconclusos somos nós, mulheres e homens, mas inconclusos são também as
jaboticabeiras que enchem, na safra, o meu quintal de pássaros cantadores; inconclusos são estes
pássaros como inconcluso é Eico, meu pastor alemão, que me "saúda” contente no começo das manhãs.
Entre nós, mulheres e homens, a inconclusão se sabe como tal. Mais ainda, a inconclusão que se
reconhece a si mesma, implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado num permanente
processo social de busca. Histórico-sócio-culturais, mulheres e homens nos tornamos seres em quem a
curiosidade, ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio vital, se torna fundante da
produção do conhecimento. Mais ainda, a curiosidade é já conhecimento. Como a linguagem que anima a
curiosidade e com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele.
Numa madrugada, há alguns meses, estávamos Nita e eu, cansados, na sala de embarque de um
aeroporto do Norte do país, à espera da partida para São Paulo num desses vôos madrugadores que a
sabedoria popular chama "vôo coruja”. Cansados e realmente arrependidos de não haver mudado o
esquema de vôo. Uma criança em tenra idade, saltitante e alegre, nos fez, finalmente, ficar contentes,
apesar da hora para nós inconveniente.
Um avião chega. Curiosa a criança inclina a cabeça na busca de selecionar o som dos motores. Volta-se
para a mãe e diz: “O avião ainda chegou.” Sem comentar, a mãe atesta: “O avião já chegou.” Silêncio. A
criança corre até o extremo da sala e volta. “O avião já chegou”, diz. O discurso da criança, que envolvia a
sua posição curiosa em face do que ocorria, afirmava primeiro o conhecimento da ação de chegar do
avião, segundo o conhecimento da temporalização da ação no advérbio já. O discurso da criança era
conhecimento do ponto de vista do fato concreto: o avião chegou e era conhecimento do ponto de vista da
criança que, entre outras coisas, Fizera o domínio da circunstância adverbial de tempo, no já.
Voltemos um pouco à nossa reflexão anterior. A consciência do inacabamento entre nós, mulheres e
homens, nos fez seres responsáveis, daí a eticidade de nossa presença no mundo. Eticidade, que não há
dúvida, podemos trair. O mundo da cultura que se alonga em mundo da história é um mundo de
liberdade, de opção, de decisão, mundo de possibilidade em que a decência pode ser negada, a liberdade
ofendida e recusada. Por isso mesmo a capacitação de mulheres e de homens em torno de sabereis
instrumentais jamais pode prescindir de sua formação ética. A radicalidade desta exigência é tal que não
deveríamos necessitar sequer de insistir na formação ética do ser ao falar de sua preparação técnica e
científica. É fundamental insistirmos nela precisamente porque, inacabados mas conscientes do
inacabamento, seres da opção, da decisão, éticos, podemos negar ou trair a própria ética. O educador
que, ensinando geografia, “castra” a curiosidade do educando em nome da eficácia da memorização
mecânica do ensino dos conteúdos, tolhe a liberdade do educando, a sua capacidade de aventurar-se. Não
forma, domestica. Tal qual quem assume a ideologia fatalista embutida no discurso neoliberal, de vez em
quando criticada neste texto, e aplicada preponderantemente às situações em que o paciente são as
classes populares. “Não há o que fazer, o desemprego é uma fatalidade do fim do século.”
A “andarilhagem” gulosa dos trilhões de dólares que, no mercado financeiro, “voam” de um lugar a outro
com a rapidez dos faxes, à procura insaciável de mais lucro, não é tratada como fatalidade. Não são as
classes populares os objetos imediatos de sua malvadez. Fala-se, por isso mesmo, da necessidade de
disciplinar a “andarilhagem” dos dólares.
No caso da reforma agrária entre nós, a disciplina de que se precisa, segundo os donos do mundo, é a que
amacie, a custo de qualquer meio, os turbulentos e arruaceiros "sem-terra”. A reforma agrária tampouco
vira fatalidade. Sua necessidade é uma invencionice absurda de falsos brasileiros, proclamam os cobiçosos
senhores das terras.
Continuemos a pensar um pouco sobre a inconclusão do ser que se sabe inconcluso, não a inconclusão
pura, em si, do ser que, no suporte, não se tornou capaz de reconhecer-se interminado. A consciência do
mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua
inconclusão num permanente movimento de busca. Na verdade, seria uma contradição se, inacabado e
consciente do inacabamento. o ser humano não se inserisse em tal movimento. É neste sentido que, para
mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros. Estar
no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem “tratar” sua própria presença
no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar
as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia,
sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar
não é possível.
É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente.
Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a
educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua
educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no
movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. “Não sou esperançoso”, disse certa vez
*
por pura teimosia, mas por exigência ontológica.
Este é um saber fundante da nossa prática educativa, da formação docente, o da nossa inconclusão
assumida. O ideal é que, na experiência educativa, educandos, educadoras e educadores, juntos,
“convivam” de tal maneira com este como com outros saberes de que falarei que eles vão virando
sabedoria. Algo que não é estranho a educadoras e educadores. Quando saio de casa para trabalhar com
os alunos, não tenho dúvida nenhuma de que, inacabados e conscientes de inacabamento, abertos à
procura, curiosos, “programados, mas para, aprender”,** exercitaremos tanto mais e melhor a nossa
capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não puros objetos do processo nos façamos.
2.3 – Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando
Outro saber necessário à prática educativa, e que se funda na mesma raiz que acabo de discutir – a da
inconclusão do ser que se sabe inconcluso –, é o que fala do respeito devido à autonomia do ser do
*
Ver Freire, Paulo. Pedagogia da esperança, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994. Ver Freire, Paulo. À
sombra desta mangueira, São Pauulo Olho d'Água, 199).
**
François Jacob.
educando. Do educando criança, jovem ou adulto. Como educador, devo estar constantemente advertido
com relação a este respeito que implica igualmente o que devo ter por mim mesmo. Não faz mal repetir
afirmação várias vezes feita neste texto – o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres
éticos. O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que
podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos podemos desrespeitar a
rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação, por isso é imprescindível deixar claro que a
possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de transgressão. O professor que
desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais
precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda
que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor
que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever
de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os
princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. É neste sentido que o professor autoritário, que
por isso mesmo afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e
inquieto, tanto quanto o professor licencioso rompe com a radicalidade do ser humano – a de sua
inconclusão assumida em que se enraíza a eticidade. É neste sentido também que a dialogicidade
verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela,
é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se
tornam radicalmente éticos. É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista
ou entendida como virtude, mas como ruptura com a decência. O que quero dizer é o seguinte: que
alguém se torne machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como transgressor da natureza
humana. Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou filosóficas para explicar
a superioridade da branquitude sobre a negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os
empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça a
força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa
possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando
exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber.
2.4 – Ensinar exige bom senso
A vigilância do meu bom senso tem uma importância enorme na avaliação que, a todo instante, devo
fazer de minha prática. Antes, por exemplo, de qualquer reflexão mais detida e rigorosa é o meu bom
senso que me diz ser tão negativo, do ponto de vista de minha tarefa docente, o formalismo insensível
que me faz recusar o trabalho de um aluno por perda de prazo, apesar das explicações convincentes do
aluno, quanto o desrespeito pleno pelos princípios reguladores da entrega dos trabalhos. É o meu bom
senso que me adverte de que exercer a minha autoridade de professor na classe, tomando decisões,
orientando atividades, estabelecendo tarefas, cobrando a produção individual e coletiva do grupo não é
sinal de autoritarismo de minha parte. É a minha autoridade cumprindo o seu dever. Não resolvemos
bem, ainda, entre nós, a tensão que a contradição autoridade-liberdade nos coloca e confundimos quase
sempre autoridade com autoritarismo, licença com liberdade.
Não preciso de um professor de ética para me dizer que não posso, como orientador de dissertação de
mestrado ou de tese de doutoramento, surpreender o pós-graduando com críticas duras a seu trabalho
porque um dos examinadores foi severo em sua arguição. Se isto ocorre e eu concordo com as críticas
feitas pelo professor não há outro caminho senão solidarizar-me de público com o orientando, dividindo
com ele a responsabilidade do equívoco ou do erro criticado*. Não preciso de um professor de ética para
me dizer isto.
Meu bom senso me diz.
Saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando e, na prática, procurar a
coerência com este saber, me leva inapelavelmente à criação de algumas virtudes ou qualidades sem as
quais aquele saber vira inautêntico, palavreado vazio e inoperante.** De nada serve, a não ser para irritar
o educando e desmoralizar o discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade mas impor
ao educando a vontade arrogante do mestre.
*
Ver Freire, Paulo. Cartas à Cristina, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995.
**
Ver Freire, Paulo. Professora Sim, Tia, Não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho d'Água, 1995.
O exercício do bom senso, com o qual só temos o que ganhar, se faz no “corpo” da curiosidade. Neste
sentido, quanto mais pomos em prática de forma metódica a nossa capacidade de indagar, de comparar,
de duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar e mais crítico se pode fazer o
nosso bom senso. O exercício ou a educação do bom senso vai superando o que há nele de instintivo na
avaliação que fazemos dos fatos e dos acontecimentos em que nos envolvemos. Se o bom senso, na
avaliação moral que faço de algo, não basta para orientar ou fundar minhas táticas de luta, tem,
indiscutivelmente, importante papel na minha tomada de posição, a que não pode faltar a ética, em face
do que devo fazer.
O meu bom senso me diz, por exemplo, que é imoral afirmar que a fome e a miséria a que se acham
expostos milhões de brasileiras e de brasileiros são uma fatalidade em face de que só há uma coisa a
fazer: esperar pacientemente que a realidade mude. O meu bom senso diz que isso é imoral e exige de
minha rigorosidade científica a afirmação de que é possível mudar com a disciplina da gulodice da minoria
insaciável.
O meu bom senso me adverte de que há algo a ser compreendido no comportamento de Pedrinho,
silencioso, assustado, distante, temeroso, escondendo-se de si mesmo. O bom senso me faz ver que o
problema não está nos outros meninos, na sua inquietação, no seu alvoroço, na sua vitalidade. O meu
bom senso não me diz o que é, mas deixa claro que há algo que precisa ser sabido. Esta é a tarefa da
ciência que, sem o bom senso do cientista, pode se desviar e se perder. Não tenho dúvida do insucesso do
cientista a quem falte a capacidade de adivinhar, o sentido da desconfiança, a abertura à dúvida, a
inquietação de quem não se acha demasiado certo das certezas. Tenho pena e, às vezes, medo, do
cientista demasiado seguro da segurança, senhor da verdade e que não suspeita sequer da historicidade
do próprio saber.
É o meu bom senso, em primeiro lugar, o que me deixa suspeitoso, no mínimo, de que não é possível à
escola, se, na verdade, engajada na formação de educandos educadores, alhear-se das condições sociais
culturais, econômicas de seus alunos, de suas famílias, de seus vizinhos.
Não é possível respeito aos educandos, à sua dignidade, a seu ser formando-se, à sua identidade fazendo-
se, se não se levam em consideração as condições em que eles vêm existindo, se não se reconhece a
importância dos “conhecimentos de experiência feitos” com que chegam à escola. O respeito devido à
dignidade do educando não me permite subestimar, pior ainda, zombar do saber que ele traz consigo para
a escola.
Quanto mais me torno rigoroso na minha prática de conhecer tanto mais, porque crítico, respeito devo
guardar pelo saber ingênuo a ser superado pelo saber produzido através do exercício da curiosidade
epistemológica.
Ao pensar sobre o dever que tenho, como professor, de respeitar a dignidade do educando, sua
autonomia, sua identidade em processo, devo pensar também, como já salientei, em como ter uma
prática educativa em que aquele respeito, que sei dever ter ao educando, se realize em lugar de ser
negado. Isto exige de mim uma reflexão crítica permanente sobre minha prática através da qual vou
fazendo a avaliação do meu próprio fazer com os educandos. O ideal é que, cedo ou tarde, se invente uma
forma pela qual os educandos possam participar da avaliação. É que o trabalho do professor é o trabalho
do professor com os alunos e não do professor consigo mesmo.
Esta avaliação crítica da prática vai revelando a necessidade de uma série de virtudes ou qualidades sem
as quais não é possível nem ela, a avaliação, nem tampouco o respeito do educando.
Estas qualidades ou estas virtudes absolutamente indispensáveis à posta em prática deste outro saber
fundamental à experiência educativa – saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à identidade
do educando – não são regalos que recebemos por bom comportamento. As qualidades ou virtudes são
construídas por nós no esforço que nos impomos para diminuir a distância entre o que dizemos e o que
fazemos. Este esforço, o de diminuir a distância entre o discurso e a prática, é já uma dessas virtudes
indispensáveis – a da coerência. Como, na verdade, posso eu continuar falando no respeito à dignidade do
educando se o ironizo, se o discrimino, se o inibo com a minha arrogância. Como posso continuar falando
em meu respeito ao educando se o testemunho que a ele dou é o da irresponsabilidade, o de quem não
cumpre o seu dever, o de quem não se prepara ou se organiza para a sua prática, o de quem não luta por
seus direitos e não protesta contra as injustiças?* A prática docente, especificamente humana, é
profundamente formadora, por isso, ética. Se não se pode esperar de seus agentes que sejam santos ou
anjos, pode-se e deve-se deles exigir seriedade e retidão.
A responsabilidade do professor, de que às vezes não nos damos conta, é sempre grande. A natureza
mesma de sua prática eminentemente formadora, sublinha a maneira como a realiza. Sua presença na
sala é de tal maneira exemplar que nenhum professor ou professora escapa ao juízo que dele ou dela
fazem os alunos. E o pior talvez dos juízos é o que se expressa na “falta” de juízo. O pior juízo é o que
considera o professor uma ausência na sala.
O professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, o professor incompetente,
irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do
mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum desses passa pelos alunos sem deixar sua
marca. Daí a importância do exemplo que o professor ofereça de sua lucidez e de seu engajamento na
peleja em defesa de seus direitos, bem como na exigência das condições para o exercício de seus deveres.
O professor tem o dever de dar suas aulas, de realizar sua tarefa docente. Para isso, precisa de condições
favoráveis, higiênicas, espaciais, estéticas, sem as quais se move menos eficazmente no espaço
pedagógico. Às vezes, as condições são de tal maneira perversas que nem se move. O desrespeito a este
espaço é uma ofensa aos educandos, aos educadores e à prática pedagógica.
2.5 – Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores
Se há algo que os educandos brasileiros precisam saber, desde a mais tenra idade, é que a luta em favor
do respeito aos educadores e à educação inclui que a briga por salários menos imorais é um dever
irrecusável e não só um direito deles. A luta dos professores em defesa de seus direitos e de sua
dignidade deve ser entendida como um momento importante de sua prática docente, enquanto prática
ética. Não é algo que vem de fora da atividade docente, mas algo que dela faz parte. O combate em favor
da dignidade da prática docente é tão parte dela mesma quanto dela faz parte o respeito que o professor
deve ter à identidade do educando, à sua pessoa, a seu direito de ser. Um dos piores males que o poder
público vem fazendo a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade brasileira foi criada, é o de
fazer muitos de nós correr o risco de, a custo de tanto descaso pela educação pública, existencialmente
cansados, cair no indiferentismo fatalistamente cínico que leva ao cruzamento dos braços. “Não há o que
fazer” é o discurso acomodado que não podemos aceitar.
O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo
agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância. Como posso
respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da
ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? Como ser educador, sobretudo
numa perspectiva progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os
diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos
com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do
que faço sob pena de não fazê-lo bem. Desrespeitado como gente no desprezo a que é relegada a prática
pedagógica não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exercê-la mal. A minha
resposta à ofensa à educação é a luta política consciente, crítica e organizada contra os ofensores. Aceito
até abandoná-la, cansado, à procura de melhores dias. O que não é possível é, ficando nela, aviltá-la com
o desdém de mim mesmo e dos educandos.
Uma das formas de luta contra o desrespeito dos poderes públicos pela educação, de um lado, é a nossa
recusa a transformar nossa atividade docente em puro bico, e de outro, a nossa rejeição a entendê-la e a
exercê-la como prática afetiva de “tias e de tios”.
É como profissionais idôneos – na competência que se organiza politicamente está talvez a maior força
dos educadores – que eles e elas devem ver-se a si mesmos e a si mesmas. É neste sentido que os
órgãos de classe deveriam priorizar o empenho de formação permanente dos quadros do magistério como
tarefa altamente política e repensar a eficácia das greves. A questão que se coloca, obviamente, não é
parar de lutar mas, reconhecendo-se que a luta é uma categoria histórica, reinventar a forma também
histórica de lutar.
* Insisto na leitura de Professora, sim. Tia, não. São Paulo, Olho d'Água, 1995
2.6 – Ensinar exige apreensão da realidade
Outro saber fundamental à experiência educativa é o que diz respeito à sua natureza. Como professor
preciso me mover com clareza na minha prática. Preciso conhecer as diferentes dimensões que
caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais seguro no meu próprio desempenho.
O melhor ponto de partida para estas reflexões é a inconclusão do ser humano de que se tornou
consciente. Como vimos, aí radica a nossa educabilidade bem como a nossa inserção num permanente
movimento de busca em que, curiosos e indagadores, não apenas nos damos conta das coisas mas
também delas podemos ter um conhecimento cabal. A capacidade de aprender, não apenas para nos
adaptar mas sobretudo para transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a, fala de nossa
educabilidade a um nível distinto do nível do adestramento dos outros animais ou do cultivo das plantas.
A nossa capacidade de aprender, de que decorre a de ensinar, sugere ou, mais do que isso, implica a
nossa habilidade de apreender a substantividade do objeto aprendido. A memorização mecânica do perfil
do objeto não é aprendizado verdadeiro do objeto ou do conteúdo. Neste caso, o aprendiz funciona muito
mais como paciente da transferência do objeto ou do conteúdo do que como sujeito crítico,
epistemologicamente curioso, que constrói o conhecimento do objeto ou participa de sua construção. É
precisamente por causa desta habilidade de apreender a substantividade do objeto que nos é possível
reconstruir um mal aprendizado, o em que o aprendiz foi puro paciente da transferência do conhecimento
feita pelo educador.
Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de
apreender. Por isso, somos os únicos em quem aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo,
muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir,
constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito.
Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa demanda a existência de
sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a
existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas,
de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua
politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra.
Especificamente humana a educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-
se de meios, de técnicas, envolve frustrações, medos, desejos. Exige de mim, como professor, uma
competência geral, um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à minha atividade docente.
Como professor, se minha opção é progressista e venho sendo coerente com ela, se não me posso
permitir a ingenuidade de pensar-me igual ao educando, de desconhecer a especificidade da tarefa do
professor, não posso, por outro lado, negar que o meu papel fundamental é contribuir positivamente para
que o educando vá sendo o artífice de sua formação com a ajuda necessária do educador. Se trabalho
com crianças, devo estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia,
atento à responsabilidade de minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar
perturbadora da busca inquieta dos educandos; se trabalho com jovens ou adultos, não menos atento
devo estar com relação a que o meu trabalho possa significar como estímulo ou não à ruptura necessária
com algo defeituosamente assentado e à espera de superação. Primordialmente, minha posição tem de
ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar. Não posso negar-lhe ou esconder-lhe
minha postura mas não posso desconhecer o seu direito de rejeitá-la. Em nome do respeito que devo aos
alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção política, assumindo uma neutralidade
que não existe. Esta, a omissão do professor em nome do respeito ao aluno, talvez seja a melhor maneira
de desrespeitá-lo. O meu papel, ao contrário, é o de quem testemunha o direito de comparar, de escolher,
de romper, de decidir e estimular a assunção deste direito por parte dos educandos.
Recentemente, num encontro público, um jovem recém-entrado na universidade me disse cortesmente:
“Não entendo como o senhor defende os sem-terra, no fundo, uns baderneiros, criadores de problemas.”
“Pode haver baderneiros entre os sem-terra”, disse, “mas sua luta é legítima e ética”. “Baderneira” é a
resistência reacionaria de quem se opõe a ferro e a fogo à reforma agrária. A imoralidade e a desordem
estão na manutenção de uma “ordem” injusta.
A conversa aparentemente morreu aí. O moço apertou minha mão em silêncio. Não sei como terá
“tratado” a questão depois, mas foi importante que tivesse dito o que pensava e que tivesse ouvido de
mim o que me parece justo que devesse ter dito.
É assim que venho tentando ser professor, assumindo minhas convicções, disponível ao saber, sensível à
boniteza da prática educativa, instigado por seus desafios que não lhe permitem burocratizar-se,
assumindo minhas limitações, acompanhadas sempre do esforço por superá-las, limitações que não
procuro esconder em nome mesmo do respeito que me tenho e aos educandos.
2.7 – Ensinar exige alegria e esperança
O meu envolvimento com a prática educativa, sabidamente política, moral, gnosiológica, jamais deixou de
ser feito com alegria, o que não significa dizer que tenha invariavelmente podido criá-la nos educandos.
Mas, preocupado com ela, enquanto clima ou atmosfera do espaço pedagógico, nunca deixei de estar.
Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de que
professor e alunos juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir
aos obstáculos à nossa alegria. Na verdade, do ponto de vista da natureza humana, a esperança não é
algo que a ela se justaponha. A esperança faz parte da natureza humana. Seria uma contradição se,
inacabado e consciente do inacabamento, primeiro, o ser humano não se inscrevesse ou não se achasse
predisposto a participar de um movimento constante de busca e, segundo, se buscasse sem esperança. A
desesperança é negação da esperança. A esperança é uma espécie de ímpeto natural possível e
necessário, a desesperança é o aborto deste ímpeto. A esperança é um condime nto indispensável à
experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro determinismo. Só há História onde há
tempo problematizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a negação da História.
É preciso ficar claro que a desesperança não é maneira de estar sendo natural do ser humano, mas
distorção da esperança. Eu não sou primeiro um ser da desesperança a ser convertido ou não pela
esperança. Eu sou, pelo contrário, um ser da esperança que, por "n" razões, se tornou desesperançado.
Daí que uma das nossas brigas como seres humanos deva ser dada no sentido de diminuir as razões
objetivas para a desesperança que nos imobiliza.
Por tudo isso me parece uma enorme contradição que uma pessoa progressista, que não teme a
novidade, que se sente mal com as injustiças, que se ofende com as discriminações, que se bate pela
decência, que luta contra a impunidade, que recusa o fatalismo cínico e imobilizante, não seja
criticamente esperançosa.
A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicista da História, de direita ou de esquerda,
leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. É que, na
inteligência mecanicista portanto determinista da História, o futuro é já sabido. A luta por um futuro assim
“a priori” conhecido prescinde da esperança.
A desproblematização do futuro, não importa em nome de quê, é uma violenta ruptura com a natureza
humana social e historicamente constituindo-se.
Tive, recentemente em Olinda, numa manhã como só os trópicos conhecem, entre chuvosa e ensolarada,
uma conversa, que diria exemplar, com um jovem educador popular que, a cada instante, a cada palavra,
a cada reflexão, revelava a coerência com que vive sua opção democrática e popular. Caminhávamos,
Danilson Pinto e eu, com alma aberta ao mundo, curiosos, receptivos, pelas trilhas de uma fivela onde
cedo se aprende que só a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência – ou
negação –, com carência, com ameaça, com desespero, com ofensa e dor. Enquanto andávamos pelas
ruas daquele mundo maltratado e ofendido eu ia me lembrando de experiências de minha juventude em
outras favelas de Olinda ou do Recife, dos meus diálogos com favelados e faveladas de alma rasgada.
Tropeçando na dor humana, nós nos perguntávamos em torno de um sem-número de problemas. Que
fazer, enquanto educadores, trabalhando num contexto assim? Há mesmo o que fazer? Como fazer o que
fazer? Que precisamos nós, os chamados educadores, saber para viabilizar até mesmo os nossos
primeiros encontros com mulheres, homens e crianças cuja humanidade vem sendo negada e traída, cuja
existência vem sendo esmagada? Paramos no meio de um pontilhão estreito que possibilita a travessia da
favela para uma parte menos maltratada do bairro popular. Olhávamos de cima um braço de rio poluído,
sem vida, cuja lama e não cuja água empapa os mocambos nela quase mergulhados. “Mais além dos
mocambos”, me disse Danilson, “há algo pior: um grande terreno onde se faz o depósito do lixo público.
Os moradores de toda esta redondeza ‘pesquisam’ no lixo o que comer, o que vestir, o que os mantenha
vivos”. Foi desse horrendo aterro que há dois anos uma família retirou de lixo hospitalar pedaços de seio
amputado com que preparou seu almoço domingueiro. A imprensa noticiou o fato que citei horrorizado e
pleno de justa raiva no meu último livro À sombra desta mangueira. É possível que a notícia tenha
provocado em pragmáticos neoliberais sua reação habitual e fatalista em favor sempre dos poderosos. “É
triste, mas, que fazer? A realidade é mesmo esta.” A realidade, porém, não é inexoravelmente esta. Está
sendo esta como poderia ser outra e é para que seja outra que precisamos os progressistas de lutar. Eu
me sentiria mais do que triste, desolado e sem achar sentido para minha presença no mundo, se fortes e
indestrutíveis razoes me convencessem de que a existência humana se dá no domínio da determinação.
Domínio em que dificilmente se poderia falar de opções, de decisão, de liberdade, de ética. “Que fazer? A
realidade é assim mesmo”, seria o discurso universal. Discurso monótono, repetitivo, como a própria
existência humana. Numa história assim determinada as posições rebeldes não têm como tornar-se
revolucionárias.
Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o
direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque,
histórico, vivo a História como tempo de possibilidade não de determinação. Se a realidade fosse assim
porque estivesse dito que assim teria de ser não haveria sequer por que ter raiva. Meu direito à raiva
pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo “pré-dado”, mas um
desafio, um problema. A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do
direito de “ser mais” inscrito na natureza dos seres humanos. Não posso, por isso, cruzar os braços
fatalistamente diante da miséria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no discurso cínico e
“morno”, que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim. O discurso da
acomodação ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio imposto de que resulta a imobilidade
dos silenciados, o discurso do elogio da adaptação tomada como fado ou sina é um discurso negador da
humanização de cuja responsabilidade não podemos nos eximir. A adaptação a situações negadoras da
humanização só pode ser aceita como conseqüência da experiência dominadora, ou como exercício de
resistência, como tática na luta política. Dou a impressão de que aceito hoje a condição de silenciado para
bem lutar, quando puder, contra a negação de mim mesmo. Esta questão, a da legitimidade da raiva
contra a docilidade fatalista diante da negação das gentes, foi um tema que esteve implícito em toda a
nossa conversa naquela manhã.
2.8 – Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível
Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou a realidades marcadas pela
traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tornando convivência, que seu estar no
contexto vá virando estar como ele, é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade. É o
saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo.
Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me
relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem
intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No
mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar. No próprio
mundo físico minha constatação não me leva à impotência. O conhecimento sobre os terremotos
desenvolveu toda uma engenharia que nos ajuda a sobreviver a eles. Não podemos eliminá-los mas
podemos diminuir os danos que nos causam. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade,
tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos
adaptar a ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior,
astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o matemático, ou o pensador da
educação. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso
estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a
inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas
insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar
descomprometidamente como se misteriosamente de repente nada tivéssemos que ver com o mundo, um
lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele.
Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?
Que sentido teria a atividade de Danilson no mundo que descortinávamos do pontilhão se, para ele,
estivesse decretada por um destino todo poderoso a impotência daquela gente fustigada pela carência?
Restaria a Danilson trabalhar apenas a possível melhora de performance da população no processo
irrecusável de sua adaptação à negação da vida. A prática de Danilson seria assim o elogio da resignação.
Na medida porém em que para ele como para mim o futuro é problemático e não inexorável, outra tarefa
se nos oferece. A de, discutindo a problematicidade do amanhã, tornando-o tão óbvio quanto a carência
de tudo na favela, ir tornando igualmente óbvio que a adaptação à dor, à fome, ao desconforto, à falta de
higiene que o eu de cada um, como corpo e alma, experimenta é uma forma de resistência física a que se
vai juntando outra, a cultural. Resistência ao descaso ofensivo de que os miseráveis são objeto. No fundo,
as resistências – a orgânica e/ou a cultural – são manhas necessárias à sobre-vivência física e cultural dos
oprimidos. O sincretismo religioso afro-brasileiro expressa a resistência ou a manha com que a cultura
africana escrava se defendia do poder hegemônico do colonizador branco.
É preciso porém que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na compreensão do futuro como
problema e na vocação para o ser mais como expressão da natureza humana em processo de estar sendo,
fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa resignação em face das ofensas que nos destroem
o ser. Não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos.
Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas
revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do mundo. A rebeldia é ponto de
partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia enquanto denúncia
precisa de se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente
anunciadora. A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o
anúncio de sua superação, no fundo, o nosso sonho.
É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil mas é possível, que vamos programar nossa ação
político-pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos comprometemos é de alfabetização de
adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de evangelização, se de formação de mão-de-obra
técnica.
O êxito de educadores como Danilson está central-mente nesta certeza que jamais os deixa de que é
possível mudar, de que é preciso mudar, de que preservar situações concretas de miséria é uma
imoralidade. É assim que este saber que a História vem comprovando se erige em princípio de ação e abre
caminho à constituição, na prática, de outros saberes indispensáveis.
Não se trata obviamente de impor à população expoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se
organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na verdade, não importa se
trabalhamos com alfabetização, com saúde, com evangelização ou com todas elas, de simultaneamente
com o trabalho específico de cada um desses campos desafiar os grupos populares para que percebam,
em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda,
que sua situação concreta não é destino certo ou vontade de Deus, algo que não pode ser mudado.
Não posso aceitar como tática do bom combate a política do quanto pior melhor, mas não posso também
aceitar, impassível, a política assistencialista que, anestesiando a consciência oprimida, prorroga, “sine
dic, a necessária mudança da sociedade. Não posso proibir que os oprimidos com quem trabalho numa
favela votem em candidatos reacionários, mas tenho o dever de adverti-los do erro que cometem, da
contradição em que se emaranham. Votar no político reacionário é ajudar a preservação do “status quo”.
Como posso votar, se sou progressista e coerente com minha opção, num candidato em cujo discurso,
faiscante de desamor, anuncia seus projetos racistas?
Partindo de que a experiência da miséria é uma violência e não a expressão da preguiça popular ou fruto
da mestiçagem ou da vontade punitiva de Deus, violência contra que devemos lutar, tenho, enquanto
educador, de me ir tornando cada vez mais competente sem o que a luta perderá eficácia. É que o saber
de que falei – mudar é difícil mas é possível –, que me empurra esperançoso à ação, não é suficiente para
a eficácia necessária a que me referi. Movendo-me enquanto nele fundado preciso ter e renovar saberes
específicos em cujo campo minha curiosidade se inquieta e minha prática se baseia. Como alfabetizar sem
conhecimentos precisos sobre a aquisição da linguagem, sobre linguagem e ideologia, sobre técnicas e
métodos do ensino da leitura e da escrita? Por outro lado, como trabalhar, não importa em que campo, no
da alfabetização, no da produção econômica em projetos cooperativos, no da evangelização ou no da
saúde sem ir conhecendo as manhas com que os grupos humanos produzem sua própria sobrevivência?
Como educador preciso de ir "lendo” cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com
quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o
seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos
populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a
compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no
que chamo “leitura do mundo” que precede sempre a “leitura da palavra”.
Se, de um lado, não posso me adaptar ou me “converter" ao saber ingênuo dos grupos populares, de
outro, não posso, se realmente progressista, impôr-lhes arrogantemente o meu saber como o verdadeiro.
O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua história social como a experiência
igualmente social de seus membros, vai revelando a necessidade de superar certos saberes que,
desnudados, vão mostrando sua “incompetência” para explicar os fatos.
Um dos equívocos funestos de militantes políticos de prática messianicamente autoritária foi sempre
desconhecer totalmente a compreensão do mundo dos grupos populares. Vendo-se como portadores da
verdade salvadora, sua tarefa irrecusável não é propô-la mas impô-la aos grupos populares.
Recentemente, ouvi de jovem operário num debate sobre a vida na favela que já se fora o tempo em que
ele tinha vergonha de ser favelado. “Agora”, dizia, “me orgulho de nós todos, companheiros e
companheiras, do que temos feito através de nossa luta, de nossa organização. Não é o favelado que deve
ter vergonha da condição de favelado mas quem, vivendo bem e fácil, nada faz para mudar a realidade
que causa a favela. Aprendi isso com a luta”. É possível que esse discurso do jovem operário não
provocasse nada ou quase nada o militante autoritariamente messiânico. É possível até que a reação do
moço mais revolucionarista do que revolucionário fosse negativa à fala do favelado, entendida como
expressão de quem se inclina mais para a acomodação do que para a luta. No fundo, o discurso do jovem
operário era a leitura nova que fazia de sua experiência social de favelado. Se ontem se culpava, agora se
tornava capaz de perceber que não era apenas responsabilidade sua se achar naquela condição. Mas,
sobretudo, se tornava capaz de perceber que a situação de favelado não é irrevogável. Sua luta foi mais
importante na constituição do seu novo saber do que o discurso sectário do militante messianicamente
autoritário.
E importante salientar que o novo momento na compreensão da vida social não é exclusivo de uma
pessoa. A experiência que possibilita o discurso novo é social. Uma pessoa ou outra, porém, se antecipa
na explicitação da nova percepção da mesma realidade. Uma das tarefas fundamentais do educador
progressista é, sensível à leitura e à releitura do grupo, provocá-lo bem como estimular a generalização
da nova forma de compreensão do contexto.
É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados
da responsabilidade por sua situação. Daí a culpa que sentem eles, em determinado momento de suas
relações com o seu contexto e com as classes dominantes por se acharem nesta ou naquela situação
desvantajosa. E exemplar a resposta que recebi de mulher sofrida, em São Francisco, Califórnia, numa
instituição católica de assistência aos pobres. Falava com dificuldade do problema que a afligia e eu,
quase sem ter o que dizer, afirmei indagando: Você é norte-americana, não é?”
“Não. Sou pobre”, respondeu como se estivesse pedindo desculpas à “norte-americanidade” por seu
insucesso na vida. Me lembro de seus olhos azuis marejados de lágrimas expressando seu sofrimento e a
assunção da culpa pelo seu “fracasso” no mundo. Pessoas assim fazem parte das legiões de ofendidos que
não percebem a razão de ser de sua dor na perversidade do sistema social, econômico, político em que
vivem, mas na sua incompetência. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam o
poder do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante.
A alfabetização, por exemplo, numa área de miséria, só ganha sentido na dimensão humana se, com ela,
se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social de que vá resultando a extrojeção da culpa
indevida. A isto corresponde a “expulsão” do opressor de “dentro” do oprimido, enquanto sombra
invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa de ser substituída por sua autonomia e sua
responsabilidade. Saliente-se contudo que, não obstante a relevância ética e política do esforço
conscientizador que acabo de sublinhar, não se pode parar nele, deixando-se relegado para um plano
secundário o ensino da escrita e da leitura da palavra. Não podemos, numa perspectiva democrática,
transformar uma classe de alfabetização num espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão
de ser dos faros nem tampouco num “comício libertador”. A tarefa fundamental dos Danilson entre quem
me situo é experimennr com intensidade a dialética entre “a leitura do mundo” e a “leitura da palavra”.
“Programados para aprender” e impossibilitados de viver sem a referência de um amanhã, onde quer que
haja mulheres e homens há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender.
Nada disso, contudo, cobra sentido, para mim, se realizado contra a vocação para o "ser mais”, histórica e
socialmente constituindo-se, em que mulheres e homens nos achamos inseridos.
2.9 – Ensinar exige curiosidade
Um pouco mais sobre a curiosidade
Se há uma prática exemplar como negação da experiência formadora é a que dificulta ou inibe a
curiosidade do educando e, em conseqüência, a do educador. É que o educador que, entregue a
procedimentos autoritários ou paternalistas que impedem ou dificultam o exercício da curiosidade do
educando, termina por igualmente tolher sua própria curiosidade. Nenhuma curiosidade se sustenta
eticamente no exercício da negação da outra curiosidade. A curiosidade dos pais que só se experimenta no
sentido de saber como e onde anda a curiosidade dos filhos se burocratiza e fenece. A curiosidade que
silencia a outra se nega a si mesma também. O bom clima pedagógico-democrático é o em que o
educando vai aprendendo à custa de sua prática mesma que sua curiosidade como sua liberdade deve
estar sujeita a limites, mas em permanente exercício. Limites eticamente assumidos por ele. Minha
curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expô-la aos demais.
Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na
busca, não aprendo nem ensino. Exercer a minha curiosidade de forma correta é um direito que tenho
como gente e a que corresponde o dever de lutar por ele, o direito à curiosidade. Com a curiosidade
domesticadaposso alcançar a memorização mecânica do perfil deste ou daquele objeto, mas não o
aprendizado real ou o conhecimento cabal do objeto. A construção ou a produção do conhecimento do
objeto implica o exercício da curiosidade, sua capacidade crítica de “tomar distância” do objeto, de
observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de "cercar” o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua
capacidade de comparar, de perguntar.
Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta, o que se pretende com esta ou com
aquela pergunta em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor, espécies de
resposta a perguntas que não foram feitas. Isto não significa realmente que devamos reduzir a atividade
docente em nome da defesa da curiosidade necessária, a puro vai-e-vem de perguntas e respostas, que
burocraticamente se esterilizam. A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos,
narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que professor e alunos saibam
que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada,
enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam
epistemologicamente curiosos.
Neste sentido, o bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do
movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma “cantiga de ninar”. Seus alunos
cansam, não dormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, surpreendem
suas pausas, suas dúvidas, suas incertezas.
Antes de qualquer tentativa de discussão de técnicas, de materiais, de métodos para uma aula dinâmica
assim, é preciso, indispensável mesmo, que o professor se ache “repousado” no saber de que a pedra
fundamental é a curiosidade do ser humano. E ela que me faz perguntar, conhecer, atuar, mais perguntar,
reconhecer.
Boa tarefa para um fim de semana seria propor a um grupo de alunos que registrasse, cada um por si, as
curiosidades mais marcantes por que foram tomados, em razão de que, em qual situação emergente de
noticiário da televisão, de propaganda, de videogame, de gesto de alguém, não importa. Que
“tratamento" deu à curiosidade, se facilmente foi superada ou se, pelo contrário, conduziu a outras
curiosidades. Se no processo curioso consultou fontes, dicionários, computadores, livros, se fez perguntas
a outros. Se a curiosidade enquanto desafio provocou algum conhecimento provisório de algo, ou não. O
que sentiu quando se percebeu trabalhando sua mesma curiosidade. E possível que, preparado para
pensar a própria curiosidade, tenha sido menos curiosa ou curioso.
A experiência se poderia refinar e aprofundar a tal ponto, por exemplo, que se realizasse um seminário
quinzenal para o debate das várias curiosidades bem como dos desdobramentos das mesmas.
O exercício da curiosidade a faz mais criticamente curiosa, mais metodicamente “perseguidora” do seu
objeto. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se “rigoriza”, tanto mais
epistemológica ela vai se tornando.
Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por
isso mesmo sempre estive em paz para lidar com ela. Não tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de
estímulos e desafios à curiosidade que a tecnologia põe a serviço das crianças e dos adolescentes das
classes sociais chamadas favorecidas. Não foi por outra razão que, enquanto secretário de educação da
cidade de São Paulo, fiz chegar à rede das escolas municipais o computador. Ninguém melhor do que
meus netos e minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computadores com os quais
convivem.
O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de
comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser. Um ruído, por exemplo,
pode provocar minha curiosidade. Observo o espaço onde parece que se está verificando. Aguço o ouvido.
Procuro comparar com outro ruído cuja razão de ser já conheço. Investigo melhor o espaço. Admito
hipóteses várias em torno da possível origem do ruído. Elimino algumas até que chego a sua explicação.
Satisfeita uma curiosidade, a capacidade de inquietar-me e buscar continua em pé. Não haveria existência
humana sem a abertura de nosso ser ao mundo, sem a transitividade de nossa consciência.
Quanto mais faço estas operações com maior rigor metódico tanto mais me aproximo da maior exatidão
dos achados de minha curiosidade.
Um dos saberes fundamentais à minha prática educativo-crítica é o que me adverte da necessária
promoção da curiosidade espontânea para a curiosidade epistemológica.
Outro saber indispensável à prática educativo-crítica é o de como lidaremos com a relação autoridade-
liberdade*, sempre tensa e que gera disciplina como indisciplina.
Resultando da harmo nia ou do equilíbrio entre autoridade e liberdade, a disciplina implica
necessariamente o respeito de uma pela outra, expresso na assunção que ambas fazem de limites que
não podem ser transgredidos.
O autoritarismo e a licenciosidade são rupturas do equilíbrio tenso entre autoridade e liberdade. O
autoritarismo é a ruptura em favor da autoridade contra a liberdade e a licenciosidade, a ruptura em favor
da liberdade contra a autoridade. Autoritarismo e licenciosidade são formas indisciplinadas de
comportamento que negam o que venho chamando a vocação ontológica do ser humano.**
*
Ver Freire, Paulo. Professora Sim, Tia nado. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho d’Água, 1995.
**
Ver Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970. Pedagogia da Esperança.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995.
Assim como inexiste disciplina no autoritarismo ou na licenciosidade, desaparece em ambos, a rigor,
autoridade ou liberdade. Somente nas práticas em que autoridade e liberdade se afirmam e se preservam
enquanto elas mesmas, portanto no respeito mútuo, é que se pode falar de práticas disciplinadas como
também em práticas favoráveis à vocação para o ser mais.
Entre nós, em função mesma do nosso passado autoritário, contestado, nem sempre com segurança por
uma modernidade ambígua, oscilamos entre formas autoritárias e formas licenciosas. Entre uma certa
tirania da liberdade e o exacerbamento da autoridade ou ainda na combinação das duas hipóteses.
O bom seria que experimentássemos o confronto realmente tenso em que a autoridade de um lado e a
liberdade do outro, medindo-se, se avaliassem e fossem aprendendo a ser ou a estar sendo elas mesmas,
na produção de situações dialógicas. Para isto, o indispensável é que ambas, autoridade e liberdade, vão
se tornando cada vez mais convertidas ao ideal do respeito comum somente como podem autenticar-se.
Comecemos por refletir sobre algumas das qualidades que a autoridade docente democrática precisa
encarnar em suas relações com a liberdade dos alunos. E interessante observar que a minha experiência
discente é fundamental para a prática docente que terei amanhã ou que estou tendo agora
simultaneamente com aquela. E vivendo criticamente a minha liberdade de aluno ou aluna que, em
grande parte, me preparo para assumir ou refazer o exercício de minha autoridade de professor. Para
isso, como aluno hoje que sonha com ensinar amanhã ou como aluno que já ensina hoje devo ter como
objeto de minha curiosidade as experiências que venho tendo com professores vários e as minhas
próprias, se as tenho, com meus alunos. O que quero dizer é o seguinte: Não devo pensar apenas sobre
os conteúdos programáticos que vêm sendo expostos ou discutides pelos professores das diferentes
disciplinas mas, ao mesmo tempo, a maneira mais aberta, dialógica, ou mais fechada, autoritária, com
que este ou aquele professor ensina.
Capítulo 3
Ensinar é uma especificidade humana
Que possibilidades de expressar-se, de crescer, vem tendo a minha curiosidade? Creio que uma das
qualidades essenciais que a autoridade docente democrática deve revelar em suas relações com as
liberdades dos alunos é a segurança em si mesma. É a segurança que se expressa na firmeza com que
atua, com que decide, com que respeita as liberdades, com que discute suas próprias posições, com que
aceita rever-se.
Segura de si, a autoridade não necessita de, a cada instante, fazer o discurso sobre sua existência, sobre
si mesma. Não precisa perguntar a ninguém, certa de sua legitimidade, se “sabe com quem está falando?”
Segura de si, ela é porque tem autoridade, porque a exerce com indiscutível sabedoria.
3.1 – Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade
A segurança com que a autoridade docente se move implica uma outra, a que se funda na sua
competência profissional. Nenhuma autoridade docente se exerce ausente desta competência. O professor
que não leve a sério sua formação, que não estude, que não se esforce para estar à altura de sua tarefa
não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe. Isto não significa, porém, que a opção e
a prática democrática do professor ou da professora sejam determinadas por sua competência científica.
Há professores e professoras cientificamente preparados mas autoritários a toda prova. O que quero dizer
é que a incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor.
Outra qualidade indispensável à autoridade em suas relações com as liberdades é a generosidade. Não há
nada que mais inferiorize a tarefa formadora da autoridade do que a mesquinhez com que se comporte.
A arrogância farisaica, malvada, com que julga os outros e a indulgência macia com que se julga ou com
que julga os seus. A arrogância que nega a generosidade nega também a humildade. que não é virtude
dos que ofendem nem tampouco dos que se regozijam com sua humilhação. O clima de respeito que
nasce de relações justas, sérias, humildes, generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos
alunos se assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico.
A reação negativa ao exercício do comando é tão incompatível com o desempenho da autoridade quanto a
sofreguidão pelo mando. O mandonismo é exatamente esse gozo irrefreável e desmedido pelo mando.
A autoridade docente mandonista, rígida, não conta com nenhuma criatividade do educando. Não faz
parte de sua forma de ser, esperar, sequer, que o educando revele o gosto de aventurar-se.
A autoridade coerentemente democrática, fundando-se na certeza da importância, quer de si mesma, quer
da liberdade dos educandos para a construção de um clima de real disciplina, jamais minimiza a liberdade.
Pelo contrário, aposta nela. Empenha-se em desafiá-la sempre e sempre; jamais vê, na rebeldia da
liberdade, um sinal de deterioração da ordem. A autoridade coerentemente democrática está convicta de
que a disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos
inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta.
A autoridade coerentemente democrática, mais ainda, que reconhece a eticidade de nossa presença, a das
mulheres e dos homens, no mundo, reconhece, também e necessariamente, que não se vive a eticidade
sem liberdade e não se tem liberdade sem risco. O educando que exercita sua liberdade ficará tão mais
livre quanto mais eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Decidir é romper e, para
isso, preciso correr o risco. Não se rompe como quem toma um suco de piranga numa praia tropical. Mas,
por outro lado, a autoridade coerentemente democrática jamais se omite.
Se recusa, de um lado, silenciar a liberdade dos educandos, rejeita, de outro, a sua supressão do processo
de construção da boa disciplina.
Um esforço sempre presente à prática da autoridade coerentemente democrática é o que a torna quase
escrava de um sonho fundamental: o de persuadir ou convencer a liberdade de que vá construindo
consigo mesma, em si mesma, com materiais que, embora vindo de fora de si, sejam reelaborados por
ela, a sua autonomia. É com ela, a autonomia, penosamente construindo-se, que a liberdade vai
preenchendo o “espaço” antes “habitado” por sua dependência. Sua autonomia que se funda na
responsabilidade que vai sendo assumida.
O papel da autoridade democrática não é, transformando a existência humana num “calendário” escolar
“tradicional”, marcar as lições de vida para as liberdades mas, mesmo quando tem um conteúdo
programático a propor, deixar claro, com seu testemunho, que o fundamental no aprendizado do conteúdo
é a construção da responsabilidade da liberdade que se assume.
No fundo, o essencial nas relações entre educador e educando, entre autoridade e liberdades, entre pais,
mães, filhos e filhas é a reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia.
Me movo como educador porque, primeiro, me movo como gente.
Posso saber pedagogia, biologia como astronomia, posso cuidar da terra como posso navegar. Sou gente.
Sei que ignoro e sei que sei. Por isso, tanto posso saber o que ainda não sei como posso saber melhor o
que já sei. E saberei tão melhor e mais autenticamente quanto mais eficazmente construa minha
autonomia em respeito à dos outros.
Ensinar e, enquanto ensino, testemunhar aos alunos o quanto me é fundamental respeitá-los e respeitar-
me são tarefas que jamais dicotomizei. Nunca me foi possível separar em dois momentos o ensino dos
conteúdos da formação ética dos educandos. A prática docente que não há sem a discente é uma prática
inteira. O ensino dos conteúdos implica o testemunho ético do professor. A boniteza da prática docente se
compõe do anseio vivo de competência do docente e dos discentes e de seu sonho ético. Não há nesta
boniteza lugar para a negação da decência, nem de forma grosseira nem farisaica. Não há lugar para
puritanismo. Só há lugar para pureza.
Este é outro saber indispensável à prática docente. O saber da impossibilidade de desunir o ensino dos
conteúdos da formação ética dos educandos. De separar prática de teoria, autoridade de liberdade,
ignorância de saber, respeito ao professor de respeito aos alunos, ensinar de aprender. Nenhum destes
termos pode ser mecanicistamente separado, um do outro. Como professor, tanto lido com minha
liberdade quanto com minha autoridade em exercício, mas também diretamente com a liberdade dos
educandos, que devo respeitar, e com a criação de sua autonomia bem como com os ensaios de
construção da autoridade dos educandos. Como professor não me é possível ajudar o educando a superar
sua ignorância se não supero permanentemente a minha. Não posso ensinar o que não sei. Mas, este,
repito, não é saber de que apenas devo falar e falar com palavras que o vento leva. É saber, pelo
contrário, que devo viver concretamente com os educandos. O melhor discurso sobre ele é o exercício de
sua prática. É concretamente respeitando o direito do aluno de indagar, de duvidar, de criticar que “falo”
desses direitos. A minha pura fala sobre esses direitos a que não corresponda a sua concretização não
tem sentido.
Quanto mais penso sobre a prática educativa, reconhecendo a responsabilidade que ela exige de nós,
tanto mais me convenço do dever nosso de lutar no sentido de que ela seja realmente respeitada. O
respeito que devemos como professores aos educandos dificilmente se cumpre, se não somos tratados
com dignidade e decência pela administração privada ou pública da educação.
3.2 – Ensinar exige comprometimento
Outro saber que devo trazer comigo e que tem que ver com quase todos os de que tenho falado é o de
que não é possível exercer a atividade do magistério como se nada ocorresse conosco. Como impossível
seria sairmos na chuva expostos totalmente a ela, sem defesas, e não nos molhar. Não posso ser
professor sem me pôr diante dos alunos, sem revelar com facilidade ou relutância minha maneira de ser,
de pensar politicamente. Não posso escapar à apreciação dos alunos. E a maneira como eles me percebem
tem importância capital para o meu desempenho. Daí, então, que uma de minhas preocupações centrais
deva ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que digo e o que faço, entre o que pareço
ser e o que realmente estou sendo.
Se perguntado por um aluno sobre o que é “tomar distância epistemológica do objeto” lhe respondo que
não sei, mas que posso vir a saber, isso não me dá a autoridade de quem conhece, me dá a alegria de,
assumindo minha ignorância, não ter mentido. E não ter mentido abre para mim junto aos alunos um
crédito que devo preservar. Eticamente impossível teria sido dar uma resposta falsa, um palavreado
qualquer. Um chute, como se diz popularmente. Mas, de um lado, precisamente porque a prática docente,
sobretudo como a entendo, me coloca a possibilidade que devo estimular de perguntas varias, preciso me
preparar ao máximo para, de outro, continuar sem mentir aos alunos, de outro, não ter de afirmar
seguidamente que não sei.
Saber que não posso passar despercebido pelos alunos, e que a maneira como me percebam me ajuda ou
desajuda no cumprimento de minha tarefa de professor, aumenta em mim os cuidados com o meu
desempenho. Se a minha opção é democrática, progressista, não posso ter uma prática reacionária,
autoritária, elitista. Não posso discriminar o aluno em nome de nenhum motivo. A percepção que o aluno
tem de mim não resulta exclusivamente de como atuo mas também de como o aluno entende como atuo.
Evidentemente, não posso levar meus dias como professor a perguntar aos alunos o que acham de mim
ou como me avaliam. Mas devo estar atento à leitura que fazem de minha atividade com eles. Precisamos
aprender a compreender a significação de um silêncio, ou de um sorriso ou de uma retirada da sala. O
tom menos cortês com que foi feita uma pergunta. Afinal, o espaço pedagógico é um texto para ser
constantemente “lido”, interpretado, “escrito" e “reescrito”. Neste sentido, quanto mais solidariedade
exista entre o educador e educandos no “trato” deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem
democrática se abrem na escola.
Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza
com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é
reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para
práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira
neutra.
Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma
presença em si política. Enquanto presença não posso ser uma omissão mas um sujeito de opções. Devo
revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de
romper. Minha capacidade de fazer justiça, de não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o
meu testemunho.
3.3 – Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo
Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática educativo-crítica é o de que,
como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo.
Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica
tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento. Dialética e
contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só a outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora
nem apenas desmascarcrdora da ideologia dominante.
Neutra, “indiferente” a qualquer destas hipóteses, a da reprodução da ideologia dominante ou a de sua
contestação, a educação jamais foi, é, ou pode ser. É um erro decrecretá-la como tarefa apenas
reprodutora da ideologia dominante como erro é tomá-la como uma força de desocultação da realidade, a
atuar livremente, sem obstáculos e duras dificuldades. Erros que implicam diretamente visões defeituosas
da História e da consciência.
De um lado, a compreensão mecanicista da História, que reduz a consciência a puro reflexo da
materialidade, e de outro, o subjetivismo idealista, que hipertrofia o papel da consciência no acontecer
histórico. Nem somos, mulheres e homens, seres simplesmente determinados nem tampouco livres de
condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e a que
nos achamos referidos.
Do ponto de vista dos interesses dominantes, não há dúvida de que a educação deve ser uma prática
imobilizadora e ocultadora de verdades. Toda vez, porém, que a conjuntura o exige, a educação
dominante é progressista à sua maneira, progressista “pela metade”. As forças dominantes estimulam e
materializam avanços técnicos compreendidos e, tanto quanto possível, realizados de maneira neutra.
Seria demasiado ingênuo, até angelical de nossa parte, esperar que a "bancada ruralista” aceitasse quieta
e concordante a discussão, nas escolas rurais e mesmo urbanas do país, da reforma agrária como projeto
econômico, político e ético da maior importância para o próprio desenvolvimento nacional. Isso é tarefa
para educadoras e educadores progressistas cumprir, dentro e fora das escolas. É tarefa para
organizações não-governamentais, para sindicatos democráticos realizar. Já não é ingênuo esperar,
porém, que o empresariado que se moderniza, com raízes urbanas, adira à reforma agrária. Seus
interesses na expansão do mercado o fazem “progressista” em face da reação ruralista. O próprio
comportamento progressista do empresariado que se moderniza, progressista em face da truculência
retrógrada dos ruralistas, se esvazia de humanismo quando da confrontação entre os interesses humanos
e os do mercado.
E é uma imoralidade, para mim, que se sobreponha, como se vem fazendo, aos interesses radicalmente
humanos, os do mercado.
Continuo bem aberto à advertência de Marx, a da necessária radicalidade que me faz sempre desperto a
tudo o que diz respeito à defesa dos interesses humanos. Interesses superiores aos de puros grupos ou de
classes de gente.
Ao reconhecer que, precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar, de comparar, de
avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos seres éticos e se abriu para
nós a probabilidade de transgredir a ética, jamais poderia aceitar a transgressão como um direito mas
como uma possibilidade. Possibilidade contra que devemos lutar e não diante da qual cruzar os braços.
Daí a minha recusa rigorosa aos fatalismos quietistas que terminam por absorver as transgressões éticas
em lugar de condená-las. Não posso virar conivente de uma ordem perversa, irresponsabilizando-a por
sua malvadez, ao atribuir a “forças cegas” e imponderáveis os danos por elas causados aos seres
humanos. A fome frente a frente abastança e o desemprego no mundo são imoralidades e não fatalidades
como o reacionarismo apregoa com ares de quem sofre por nada poder fazer. O que quero repetir, com
força, é que nada justifica a minimização dos seres humanos, no caso as maiorias compostas de minorias
que não perceberam ainda que juntas seriam a maioria. Nada, o avanço da ciência e/ou da tecnologia,
pode legitimar uma “ordem” desordeira em que só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às
maiorias em dificuldades até para sobreviver se diz que a realidade é assim mesmo, que sua fome é uma
fatalidade do fim do século. Não junto a minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos
esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da
resistencia, da indignação, da “justa ira” dos traídos e dos enganados. Do seu direito e do seu dever de
rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais sofridas.
A ideologia fatalista do discurso e da política neoliberais de que venho falando é um momento daquela
desvalia acima referida dos interesses humanos em relação aos do mercado.
Dificilmente um empresário moderno concordaria com que seja direito de “seu” operário, por exemplo,
discutir durante o processo de sua alfabetização ou no desenvolvimento de algum curso de
aperfeiçoamento técnico, esta mesma ideologia a que me venho referindo. Discutir, suponhamos, a
afirmação: “O desemprego no mundo é uma fatalidade do fim deste século.” E por que fazer a reforma
agrária não é também uma fatalidade? E por que acabar com a fome e com a miséria não são igualmente
fatalidades de que não se pode fugir?
É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar o máximo de sua
eficácia técnica e não perder tempo com debates "ideológicos” que a nada levam. O operário precisa
inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica
mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra
menos injusta e mais humana.
Naturalmente, reinsisto, O empresário moderno aceita, estimula e patrocina o treino técnico de seu
operário. O que ele necessariamente recusa é a sua formação que, envolvendo o saber técnico e científico
indispensável, fala de sua presença no mundo. Presença humana, presença ética, aviltada toda vez que
transformada em pura sombra.
Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática
exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre
isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não
posso ser professor a favor simplesmente do Homem ou da Humanidade, frase de uma vaguidade
demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência contra
o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da
democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra
qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais.
Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou
professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o desengano que me
consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some
se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições
materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o
testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa mas não desiste. Boniteza que se esvai de minha
prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso e me admirar.
Assim como não posso ser professor sem me achar capacitado para ensinar certo e bem os conteúdos de
minha disciplina não posso, por outro lado, reduzir minha prática docente ao puro ensino daqueles
conteúdos. Esse é um momento apenas de minha atividade pedagógica. Tão importante quanto ele, o
ensino dos conteúdos, é o meu testemunho ético ao ensiná-los. É a decência com que o faço. É
preparação científica revelada sem arrogância, pelo contrário, com humildade. É o respeito jamais negado
ao educando, a seu saber de “experiência feito” que busco superar com ele. Tão importante quanto o
ensino dos conteúdos é minha coerência na classe. A coerência entre o que digo, o que escrevo e o que
faço.
É importante que os alunos percebam o esforço que faz o professor ou a professora procurando sua
coerência. É preciso também que este esforço seja de quando em vez discutido na classe. Há situações
em que a conduta da professora pode parecer aos alunos contraditória. Isto se dá quase sempre quando o
professor simplesmente exerce sua autoridade na coordenação das atividades na classe e parece aos
alunos que ele, o professor, exorbitou de seu poder. Às vezes, é o próprio professor que não está certo de
ter realmente ultrapassado o limite de sua autoridade ou não.
3.4 – Ensinar exige liberdade e autoridade
Noutro momento deste texto me referi ao fato de não termos ainda resolvido o problema da tensão entre
a autoridade e a liberdade. Inclinados a superar a tradição autoritária, tão presente entre nós resvalamos
para formas licenciosas de comportamento e descobrimos autoritarismo onde só houve o exercício
legítimo da autoridade.
Recentemente, jovem professor universitário, de opção democrática, comentava comigo o que lhe parecia
ter sido um desvio seu no uso de sua autoridade. Disse, constrangido, ter se oposto a que aluno de outra
classe continuasse na porta entreaberta de sua sala, a manter uma conversa gesticulada com uma das
alunas. Ele tivera inclusive que parar sua fala em face do descompasso que a situação provocava. Para
ele, sua decisão, com que devolvera ao espaço pedagógico o necessário clima para continuar sua
atividade específica e com a qual restaurara o direito dos estudantes e o seu de prosseguir a prática
docente, fora autoritária. Na verdade, não. Licencioso teria sido se tivesse permitido que a indisciplina de
uma liberdade mal centrada desequilibrasse o contexto pedagógico, prejudicando assim o seu
funcionamento.
Num dos inúmeros debates de que venho participando, e em que discutia precisamente a questão dos
limites sem os quais a liberdade se perverte em licença e a autoridade em autoritarismo ouvi de um dos
participantes que, ao falar dos limites à liberdade eu estava repetindo a cantilena que caracterizava o
discurso de professor seu, reconhecidamente reacionário, durante o regime militar. Para o meu
interlocutor, a liberdade estava acima de qualquer limite. Para mim, não, exatamente porque aposto nela,
porque sei que sem ela a existência só tem valor e sentido na luta em favor dela. A liberdade sem limite é
tão negada quanto a liberdade asfixiada ou castrada.
O grande problema que se coloca ao educador ou à educadora de opção democrática é como trabalhar no
sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade. Quanto
mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais autoridade tem ela, eticamente
falando, para continuar lutando em seu nome.
Gostaria uma vez mais de deixar bem expresso o quanto aposto na liberdade, o quanto me parece
fundamental que ela se exercite assumindo decisões. Foi isso, pelo menos, o que marcou a minha
experiência de filho, de irmão, de aluno, de professor, de marido, de pai e de cidadão.
A liberdade amadurece no confronto com outras liberdades, na defesa de seus direitos em face da
autoridade dos pais, do professor, do Estado. É claro que, nem sempre, a liberdade do adolescente faz a
melhor decisão com relação a seu amanhã. É indispensável que os pais tornem parte das discussões com
os filhos em torno desse amanhã. Não podem nem devem omitir-se mas precisam saber e assumir que o
futuro é de seus filhos e não seu. É preferível, para mim, reforçar o direito que tem a liberdade de decidir,
mesmo correndo o risco de não acertar, a seguir a decisão dos pais. É decidindo que se aprende a decidir.
Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido nunca, porque há sempre a sabedoria e a sensatez de
meu pai e de minha mãe a decidir por mim. Não valem argumentos imediatistas como: “Já imaginou o
risco, por exemplo, que você corre, de perder tempo e oportunidade, insistindo nessa idéia maluca???” A
idéia do filho, naturalmente. O que há de pragmático em nossa existência não pode sobrepor-se ao
imperativo ético de que não podemos fugir. O filho tem, no mínimo, o direito de provar a “maluquice de
sua idéia”. Por outro lado, faz parte do aprendizado da decisão a assunção das conseqüências do ato de
decidir. Não há decisão a que não se sigam efeitos esperados, pouco esperados ou inesperados. Por isso é
que a decisão é um processo responsável. Uma das tarefas pedagógicas dos pais é deixar óbvio aos filhos
que sua participação no processo de tomada de decisão deles não é uma intromissão mas um dever, até,
desde que não pretendam assumir a missão de decidir por eles. A participação dos pais se deve dar
sobretudo na análise, com os filhos, das conseqüências possíveis da decisão a ser tomada.
A posição da mãe ou do pai é a de quem, sem nenhum prejuízo ou rebaixamento de sua autoridade,
humildemente, aceita o papel de enorme importância de assessor ou assessora do filho ou da filha.
Assessor que, embora batendo-se pelo acerto de sua visão das coisas, jamais tenta impor sua vontade ou
se abespinha porque seu ponto de vista não foi aceito.
O que é preciso, fundamentalmente mesmo, é que o filho assuma eticamente, responsavelmente, sua
decisão, fundante de sua autonomia. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai
se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas. Por que, por
exemplo, não desafiar o filho, ainda criança, no sentido de participar da escolha da melhor hora para fazer
seus deveres escolares? Por que o melhor tempo para esta tarefa é sempre o dos pais? Por que perder a
oportunidade de ir sublinhando aos filhos o dever e o direito que eles têm, como gente, de ir forjando sua
própria autonomia? Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de
repente, aos 25 anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto
amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que
uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da
responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade.
Uma coisa me parece muito clara hoje: jamais tive medo de apostar na liberdade, na seriedade, na
amorosidade, na solidariedade, na luta em favor das quais aprendi o valor e a importância da raiva.
Jamais receei ser criticado por minha mulher, por minhas filhas, por meus filhos, assim como pelos alunos
e alunas com quem tenho trabalhado ao longo dos anos, porque tivesse apostado demasiado na liberdade,
na esperança, na palavra do outro, na sua vontade de erguer-se ou reerguer-se, por ter sido mais ingênuo
do que crítico. O que temi, nos diferentes momentos de minha vida, foi dar margem, por gestos ou
palavrações, a ser considerado um oportunista, um “realista”, “um homem de pé no chão”, ou um desses
“equilibristas” que se acham sempre em “cima do muro” à espera de saber qual a onda que se fará poder.
O que sempre deliberadamente recusei, em nome do próprio respeito à liberdade, foi sua distorção em
licenciosidade. O que sempre procurei foi viver em plenitude a relação tensa, contraditória e não
mecânica, entre autoridade e liberdade, no sentido de assegurar o respeito entre ambas, cuja ruptura
provoca a hipertrofia de uma ou de outra.
É interessante observar como, de modo geral, os autoritários consideram, amiúde, o respeito
indispensável à liberdade como expressão de incorrigível espontaneísmo e os licenciosos descobrem
autoritarismo em toda manifestação legítima da autoridade. A posição mais difícil, indiscutivelmente
correta, é a do democrata, coerente com seu sonho solidário e igualitário, para quem não é possível
autoridade sem liberdade e esta sem aquela.
3.5 – Ensinar exige tomada consciente de decisões
Voltemos à questão central que venho discutindo nesta parte do texto: a educação, especificidade
humana, como um ato de intervenção no mundo. É preciso deixar claro que o conceito de intervenção não
está sendo usado com nenhuma restrição semântica. Quando falo em educação como intervenção me
refiro tanto à que aspira a mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações
humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação, à saúde, quanto à que, pelo
contrário, reacionariamente pretende imobilizar a História e manter a ordem injusta.
Estas formas de intervenção, com ênfase mais num aspecto do que noutro nos dividem em nossas opções
em relação a cuja pureza nem sempre somos leais. Rara vez, por exemplo, percebemos a incoerência
agressiva que existe entre as nossas afirmações “progressistas” e o nosso estilo desastrosamente elitista
de ser intelectuais. E que dizer de educadores que se dizem progressitas mas de prática pedagógico-
política eminentemente autoritária? Não é por outra razão que insisti tanto em Professora Sim, Tia Não,
na necessidade de criarmos, em nossa prática docente, entre outras, a virtude da coerência. Não há nada
talvez que desgaste mais um professor que se diz progressista do que sua prática racista, por exemplo. É
interessante observar como há mais coerência entre os intelectuais autoritários, de direita ou de
esquerda. Dificilmente, um deles ou uma delas respeita e estimula a curiosidade crítica nos educandos, o
gosto da aventura. Dificilmente contribui, de maneira deliberada e consciente, para a constituição e a
solidez da autonomia do ser do educando. De modo geral, teimam em depositar nos alunos apassivados a
descrição do perfil dos conteúdos, em lugar de desafiá-los a apreender a substantividade dos mesmos,
enquanto objetos gnosiológicos, somente como os aprendem.
É na diretividade da educação, esta vocação que ela tem, como ação especificamente humana, de
“endereçar-se” até sonhos, ideais, utopias e objetivos, que se acha o que venho chamando politicidade da
educação. A qualidade de ser política, inerente à sua natureza. É impossível, na verdade, a neutralidade
da educação. E é impossível, não porque professoras e professores “baderneiros” e “subversivos” o
determinem. A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política.
Quem pensa assim, quem afirma que é por obra deste ou daquele educador, mais ativista que outra coisa,
que a educação vira política, não pode esconder a forma depreciativa como entende a política. Pois é na
medida mesmo em que a educação é deturpada e diminuída pela ação de “baderneiros” que ela, deixando
de ser verdadeira educação, possa a ser política, algo sem valor.
A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se
funda na sua natureza inacabada e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente de seu
inacabamento, histórico, necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de opção, de
decisão. Um ser ligado a interesses e em relação aos quais tanto pode manter-se fiel à eticidade quanto
pode transgredi-la. É exatamente porque nos tornamos éticos que se criou para nós a probabilidade, como
afirmei antes, de violar a ética.
Para que a educação fosse neutra era preciso que não houvesse discordância nenhuma entre as pessoas
com relação aos modos de vida individual e social, com relação ao estilo político a ser posto em prática,
aos valores a serem encarnados. Era preciso que não houvesse, em nosso caso, por exemplo, nenhuma
divergência em face da fome e da miséria no Brasil e no mundo; era necessário que toda a população
nacional aceitasse mesmo que elas, miséria e fome, aqui e fora daqui, são uma fatalidade do fim do
século. Era preciso também que houvesse unanimidade na forma de enfrentá-las para superá-las. Para
que a educação não fosse uma forma política de intervenção no mundo era indispensável que o mundo em
que ela se desse não fosse humano. Há uma incompatibilidade total entre o mundo humano da fala, da
percepção, da inteligibilidade, da comunicabilidade, da ação, da observação, da comparação, da
verificação, da busca, da escolha, da decisão, da ruptura, da ética e da possibilidade de sua transgressão
e a neutralidade não importa de quê.
O que devo pretender não é a neutralidade da educação mas o respeito, a toda prova, aos educandos, aos
educadores e às educadoras. O respeito aos educadores e educadoras por parte da administração pública
ou privada das escolas; o respeito aos educandos assumido e praticado pelos educadores não importa de
que escola, particular ou publica. É por isto que devo lutar sem cansaço. Lutar pelo direito que tenho de
ser respeitado e pelo dever que tenho de reagir a que me destratem. Lutar pelo direito que você, que me
lê, professora ou aluna, tem de ser você mesma e nunca, jamais, lutar por essa coisa impossível,
acinzentada e insossa que é a neutralidade. Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda,
talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? “Lavar as mãos” em
face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele. Como posso ser neutro diante da
situação, não importa qual seja ela, em que o corpo das mulheres e dos homens vira puro objeto de
espoliação e de descaso?
O que se coloca à educadora ou ao educador democrático, consciente da impossibilidade da neutralidade
da educação, é forjar em si um saber especial, que jamais deve abandonar, saber que motiva e sustenta
sua luta: se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se a educação não é
a chave das transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante. O
que quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a serviço da transformação da sociedade,
porque assim eu queira, nem tampouco é a perpetuação do "status quo” porque o dominante o decrete. O
educador e a educadora críticos não podem pensar que, a partir do curso que coordenam ou do seminário
que lideram, podem transformar o país. Mas podem demonstrar que é possível mudar. E isto reforça nele
ou nela a importância de sua tarefa político-pedagógica.
A professora democrática, coerente, competente, que testemunha seu gosto de vida, sua esperança no
mundo melhor, que atesta sua capacidade de luta, seu respeito às diferenças, sabe cada vez mais o valor
que tem para a modificação da realidade, a maneira consistente com que vive sua presença no mundo, de
que sua experiência na escola é apenas um momento, mas um momento importante que precisa de ser
autenticamente vivido.
3.6 – Ensinar exige saber escutar
Recentemente, em conversa com um grupo de amigos e amigas, uma delas, a professora Olgair Garcia,
me disse que, em sua experiência pedagógica de professora de crianças e de adolescentes mas também
de professora de professoras, vinha observando quão importante e necessário é saber escutar. Se, na
verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo,
sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a
escutar, mas é escutando que aprendemos a ferir com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente
o outro, fala com ele. Mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele. O que jamais faz quem
aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra
posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como
objeto de seu discurso. O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às
vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele.
Há um sinal dos tempos, entre outros, que me assusta: a insistência com que, em nome da democracia,
da liberdade e da eficácia, se vem asfixiando a própria liberdade e, por extensão, a criatividade e o gosto
da aventura do espírito. A liberdade de mover-nos, de arriscar-nos vem sendo submetida a uma certa
padronização de fórmulas, de maneiras de ser, em relação às quais somos avaliados. É claro que já não se
trata de asfixia truculentamente realizada pelo rei despótico sobre seus súditos, pelo senhor feudal sobre
seus vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados, pelo dono da fábrica sobre seus operários, pelo
Estado autoritário sobre os cidadãos, mas pelo poder invisível da domesticação alienante que alcança a
eficiência extraordinária no que venho chamando “burocratização da mente”. Um estado refinado de
estranheza, de "autodemissão” da mente, do corpo consciente, de conformismo do indivíduo, de
acomodação diante de situações consideradas fatalistamente como imutáveis. E a posição de quem encara
os fatos como algo consumado, como algo que se deu porque tinha que se dar da forma como se deu, é a
posição, por isso mesmo, de quem entende e vive a História como determinismo e não como
possibilidade. É a posição de quem se assume como fragilidade total diante do todo-poderosismo dos fatos
que não apenas se deram porque tinham que se dar mas que não podem ser “reorientados” ou alterados.
Não há, nesta maneira mecanicista de compreender a História, lugar para a decisão humana.* Na medida
mesma em que a desproblematização do tempo, de que resulta que o amanhã ora é a perpetuação do
hoje, ora é algo que será porque está dito que será, não há lugar para a escolha, mas para a acomodação
bem comportada ao que está aí ou ao que virá. Nada é possível de ser feito contra a globalização que,
realizada porque tinha de ser realizada, tem de continuar seu destino, porque assim está misteriosamente
escrito que deve ser. A globalização que reforça o mando das minorias poderosas e esmigalha e pulveriza
a presença impotente dos dependentes, fazendo-os ainda mais impotentes é destino dado. Em face dela
*
Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
não há outra saída senão que cada um baixe a cabeça docilmente e agradeça a Deus porque ainda está
vivo. Agradeça a Deus ou à própria globalização.
Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de
provar que o ser humano é maior do que os mecanicismos que o minimizam.
A proclamada morte da História que significa, em última análise, a morte da utopia e do sonho, reforça,
indiscutivelmente, os mecanismos de asfixia da liberdade. Daí que a briga pelo resgate do sentido cia
utopia ele que a prática educativa humanizante não pode deixar de estar impregnada tenha de ser uma
sua constante.
Quanto mais me deixe seduzir pela aceitação da morte da História tanto mais admito que a
impossibilidade do amanhã diferente implica a eternidade do hoje neo-liberal que aí está, e a permanência
do hoje mata em mim a possibilidade de sonhar. Desproblematizando o tempo, a chamada morte da
História decreta o imobilismo que nega o ser humano.
A desconsideração total pela formação integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a
maneira autoritária de falar de cima para baixo. Nesse caso, falar a, que, na perspectiva democrática é
um possível momento do falar com, nem sequer é ensaiado. A desconsideração total pela formação
integral do ser humano, a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima
para baixo a que falta, por isso mesmo, a intenção de sua democratização no falar com.
Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais como
discursos verticais, de cima para baixo, mas insistindo em passar por democráticos. A questão que se
coloca a nós, enquanto professores e alunos críticos e amorosos da liberdade, não é, naturalmente, ficar
contra a avaliação, de resto necessária, mas resistir aos métodos silenciadores com que ela vem sendo às
vezes realizada. A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação
enquanto instrumento de apreciação do que-fazer de sujeitos críticos a serviço, por isso mesmo, da
libertação e não da domesticação. Avaliação em que se estimule o falar a como caminho do falar com.
No processo da fala e da escuta a disciplina do silêncio a ser assumido com rigor e a seu tempo pelos
sujeitos que falam e escutam é um “sine qua” da comunicação dialógica. O primeiro sinal de que o sujeito
que fala sabe escutar é a demonstração de sua capacidade de controlar não só a necessidade de dizer a
sua palavra, que é um direito, mas também o gosto pessoal, profundamente respeitável, de expressá-la.
Quem tem o que dizer tem igualmente o direito e o dever de dizê-lo. É preciso, porém, que quem tem o
que dizer saiba, sem sombra de dúvida, não ser o único ou a única a ter o que dizer. Mais ainda, que o
que tem a dizer não é necessariamente, por mais importante que seja, a verdade alvissareia por todos
esperada. É preciso que quem tem o que dizer saiba, sem dúvida nenhuma, que, sem escutar o que quem
escuta tem igualmente a dizer, termina por esgotar a sua capacidade de dizer por muito ter dito sem nada
ou quase nada ter escutado.
Por isso é que, acrescento, quem tem o que dizer deve assumir o dever de motivar, de desafiar quem
escuta, no sentido de que, quem escuta diga, fale, responda. E intolerável o direito que se dá a si mesmo
o educador autoritário de comportar-se como o proprietário da verdade de que se apossa e do tempo para
discorrer sobre ela. Para ele, quem escuta sequer tem tempo próprio pois o tempo de quem escuta é o
seu, o tempo de sua fala. Sua fala, por isso mesmo, se dá num espaço silenciado e não num espaço com
ou em silêncio. Ao contrário, o espaço do educador democrático, que aprende a falar escutando, é cortado
pelo silêncio intermitente de quem, falando, cala para escutar a quem, silencioso, e não silenciado, fala.
A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao
escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento
interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente
comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a
criação de quem escutou. Fora disso, fenece a comunicação.
Voltemos a um ponto referido antes, mas sobre que preciso insistir. Uma das características da
experiência existencial no mundo em comparação com a vida no suporte é a capacidade que mulheres e
homens criamos de inteligir o mundo sobre que e em que atuamos, o que se deu simultaneamente com a
comunicabilidade do inteligido. Não há inteligência da realidade sem a possibilidade de ser comunicada.
Um dos sérios problemas que temos é como trabalhar a linguagem oral ou escrita associada ou não à
força da imagem, no sentido de efetivar a comunicação que se acha na própria compreensão ou
inteligência do mundo. A comunicabilidade do inteligido é a possibilidade que ele tem de ser comunicado
mas não é ainda a sua comunicação.
Sou tão melhor professor, então, quanto mais eficazmente consiga provocar o educando no sentido de
que prepare ou refine sua curiosidade, que deve trabalhar com minha ajuda, com vistas a que produza
sua inteligência do objeto ou do conteúdo de que falo. Na verdade, meu papel como professor, ao ensinar
o conteúdo a ou b, não é apenas o de me esforçar para, com clareza máxima, descrever a substantividade
do conteúdo para que o aluno o fixe. Meu papel fundamental, ao falar com clareza sobre o objeto, é incitar
o aluno a fim de que ele, com os materiais que ofereço, produza a compreensão do objeto em lugar de
recebê-la, na íntegra, de mim. Ele precisa de se apropriar da inteligência do conteúdo para que a
verdadeira relação de comunicação entre mim, como professor, e ele, como aluno se estabeleça. É por
isso, repito, que ensinar não é transferir conteúdo a ninguém, assim como aprender não é memorizar o
perfil do conteúdo transferido no discurso vertical do professor. Ensinar e aprender têm que ver com o
esforço metodicamente crítico do professor de desvelar a compreensão de algo e com o empenho
igualmente crítico do aluno de ir entrando como sujeito em aprendizagem, no processo de desvelamento
que o professor ou professora deve deflagrar. Isso não tem nada que ver com a transferência de conteúdo
e fala da dificuldade mas, ao mesmo tempo, da boniteza da docência e da discência.
Não é difícil compreender, assim, como uma de minhas tarefas centrais como educador progressista seja
apoiar o educando para que ele mesmo vença suas dificuldades na compreensão ou na inteligência do
objeto e para que sua curiosidade, compensada e gratificada pelo êxito da compreensão alcançada, seja
mantida e, assim, estimulada a continuar a busca permanente que o processo de conhecer implica. Que
me seja perdoada a reiteração, mas é preciso enfatizar, mais uma vez: ensinar não é transferir
inteligência do objeto ao educando mas instigá-lo no sentido de que, como sujeito cognoscente, se torne
capaz de inteligir e comunicar o inteligido. É neste sentido que se impõe a mim escutar o educando em
suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória. E ao escutá-lo, aprendo a falar com ele.
Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido
aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à
fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Isto não quer dizer, evidentemente, que escutar
exija de quem realmente escuta sua redução ao outro que fala. Isto não seria escuta, mas auto-anulação.
A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me
opor, de me posicionar. Pelo contrário, é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou
melhor me situar do ponto de vista das idéias. Como sujeito que se dá ao discurso do outro, sem
preconceitos, o bom escutador fala e diz de sua posição com desenvoltura. Precisamente porque escuta,
sua fala discordante, em sendo afirmativa, porque escuta, jamais é autoritária.
Não é difícil perceber como há umas tantas qualidades que a escuta legítima demanda do seu sujeito.
Qualidades que vão sendo constituídas na prática democrática de escutar.
Deve fazer parte de nossa formação discutir quais são estas qualidades indispensáveis, mesmo sabendo
que elas precisam de ser criadas por nós, em nossa prática, se nossa opção político-pedagógica é
democrática ou progressista e se somos coerentes com ela. É preciso que saibamos que, sem certas
qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria,
gosto pela vida, abertura ao novo, dispobilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos,
identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógico-progressista, que
não se faz apenas com ciência e técnica.
Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o
menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a
mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar
com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao
diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer
respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível.
Se a estrutura do meu pensamento é a única certa, irrepreensível, não posso escutar quem pensa e
elabora seu discurso de outra maneira que não a minha. Nem tampouco escuto quem fala ou escreve fora
dos padrões da gramática dominante. E como estar aberto às formas de ser, de pensar, de valorar,
consideradas por nós demasiado estranhas e exóticas de outra cultura? Vemos como o respeito às
diferenças e obviamente aos diferentes exige de nós a humildade que nos adverte dos riscos de
ultrapassagem dos limites além dos quais a nossa autovalia necessária vira arrogância e desrespeito aos
demais. É preciso afirmar que ninguém pode ser humilde por puro formalismo como se cumprisse mera
obrigação burocrática. A humildade exprime, pelo contrário, uma das raras certezas de que estou certo: a
de que ninguém é superior a ninguém. A falta de humildade, expressa na arrogância e na falsa
superioridade de uma pessoa sobre a outra, de uma raça sobre a outra, de um gênero sobre o outro, de
uma classe ou de uma cultura sobre a outra, é uma transgressão da vocação humana do ser mais.* O que
a humildade não pode exigir de mim é a minha submissão à arrogância e ao destempero de quem me
desrespeita. O que a humildade exige de mim, quando não posso reagir à altura da afronta, é enfrentá-la
com dignidade. A dignidade do meu silêncio e do meu olhar que transmitem o meu protesto possível.
E óbvio que não posso me bater fisicamente com um jovem a quem não é necessário juntar robustez e,
menos ainda, a qualidade de lutador. Nem por isso, porém, devo amesquinhar-me diante de seu
desrespeito e de seu agravo, trazendo-os comigo de volta para casa sem um gesto ao menos de protesto.
É preciso que, assumindo com gravidade a minha impotência na relação de poder entre mim e ele, fique
sublinhada sua covardia. É necessário que ele saiba que eu sei que sua falta de valor ético o inferioriza. É
preciso que ele saiba que, se fisicamente pode golpear-me e seus golpes me causam dor, não tem,
contudo, a força suficiente para dobrar-me a seu arbítrio.
Sem bater fisicamente no educando o professor pode golpeá-lo, impor-lhe desgostos e prejudicá-lo no
processo de sua aprendizagem. A resistência do professor, por exemplo, em respeitar a “leitura de
mundo” com que o educando chega à escola, obviamente condicionada por sua cultura de classe e
revelada em sua linguagem, também de classe, se constitui em um obstáculo à sua experiência de
conhecimento. Como tenho insistido neste e em outros trabalhos, saber escutá-lo não significa, já deixei
isto claro, concordar com ela, a leitura do mundo ou a ela se acomodar, assumindo-a como sua. Respeitar
a leitura de mundo, do educando não é também um jogo tático com que o educador ou educadora procura
tornar-se simpático ao educando. É a maneira correra que tem o educador de, com o educando e não
sobre ele, tentar a superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de inteligir o mundo.
Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida para a compreensão do
papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo especial, como um dos impulsos fundantes
da produção do conhecimento. É preciso que, ao respeitar a leitura do mundo do educando para ir mais
além dela, o educador deixe claro que a curiosidade fundamental à inteligibilidade do mundo é histórica e
se dá na história, se aperfeiçoa, muda qualitativamente, se faz metodicamente rigorosa. E a curiosidade
assim metodicamente rigorizada faz achados cada vez mais exatos. No fundo, o educador que respeita a
leitura de mundo do educando, reconhece a historicidade do saber, o caráter histórico da curiosidade,
desta forma, recusando a arrogância cientificista, assume a humildade crítica, própria da posição
verdadeiramente científica.
O desrespeito à leitura de mundo do educando revela o gosto elitista, portanto antidemocrático, do
educador que, desta forma, não escutando o educando,com ele não fala. Nele deposita seus comunicados.
Há algo ainda de real importância a ser discutido na reflexão sobre a recusa ou ao respeito à leitura de
mundo do educando por parte do educador. A leitura de mundo revela, evidentemente, a inteligência do
mundo que vem cultural e socialmente se constituindo. Revela também o trabalho individual de cada
sujeito no próprio processo de assimilação da inteligência do mundo.
Uma das tarefas essenciais da escola, como centro de produção sistemática de conhecimento, é trabalhar
criticamente inteligibilidade das coisas e dos fatos e a sua comunicabilidade. É imprescindível portanto que
a escola instigue constantemente a curiosidade do educando em vez de “amaciá-la” ou “domesticá-la”. É
preciso mostrar ao educando que o uso ingênuo da curiosidade altera a sua capacidade de achar e
obstaculiza a exatidão do achado. É preciso por outro lado e, sobretudo, que o educando vá assumindo o
papel de sujeito da produção de sua inteligência do mundo e não apenas o de recebedor da que lhe seja
transferida pelo professor.
*
Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido.
Quanto mais me torno capaz de me afirmar como sujeito pode conhecer tanto melhor desempenho minha
aptidão para fazê-lo.
Ninguém pode conhecer por mim assim como não posso conhecer pelo aluno. O que posso e o que devo
fazer é, na perspectiva progressista em que me acho, ao ensinar-lhe certo conteúdo, desafiá-lo a que se
vá percebendo na e pela própria pratica, sujeito capaz de saber. Meu papel de professor progressista não
é apenas o de ensinar matemática ou biologia mas sim, tratando a temática que é, de um lado objeto de
meu ensino, de outro, da aprendizagem do aluno, ajudá-lo a reconhecer-se como arquiteto de sua própria
prática cognoscitiva.
Todo ensino de conteúdos demanda de quem se acha na posição de aprendiz que, a partir de certo
momento, vá assumindo a autoria também do conhecimento do objeto. O professor autoritário, que
recusa escutar os alunos, se fecha a esta aventura criadora. Nega a si mesmo a participação neste
momento de boniteza singular: o da afirmação do educando como sujeito de conhecimento. É por isso que
o ensino dos conteúdos, criticamente realizado, envolve a abertura total do professor ou da professora, à
tentativa legítima do educando para tomar em suas mãos a responsabilidade de sujeito que conhece. Mais
ainda, envolve a iniciativa do professor que deve estimular aquela tentativa no educando, ajudando-o
para que a efetive.
É neste sentido que se pode afirmar ser tão errado separar prática de teoria, pensamento de ação,
linguagem de ideologia, quanto separar ensino de conteúdos de chama-mento ao educando para que se
vá fazendo sujeito do processo de aprendê-los. Numa perspectiva progressista o que devo fazer é
experimentar a unidade dinâmica entre o ensino do conteúdo e o ensino de que é e de como aprender. É
ensinando matemática que ensino também como aprender e como ensinar, como exercer a curiosidade
epistemológica indispensável à produção do conhecimento.
3.7 – Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica
Saber igualmente fundamental à prática educativa do professor ou da professora é o que diz respeito à
força, às vezes maior do que pensamos, da ideologia. E o que nos adverte de suas manhas, das
armadilhas em que nos faz cair. É que a ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade
dos faros, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos
torna “míopes”.
O poder da ideologia me faz pensar nessas manhãs orvalhadas de nevoeiro em que mal vemos o perfil dos
ciprestes como sombras que parecem muito mais manchas das sombras mesmas. Sabemos que há algo
metido na penumbra mas não o divisamos bem. A própria “miopia” que nos acomete dificulta a percepção
mais clara, mais nítida da sombra. Mais séria ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que
o que vemos e ouvimos é o que na verdade é, e não a verdade distorcida. A capacidade de penumbrar a
realidade, de nos “miopizar", de nos ensurdecer que tem a ideologia faz, por exemplo, a muitos de nós,
aceitar docilmente o discurso cinicamente fatalista neo-liberal que proclama ser o desemprego no mundo
uma desgraça do fim de século. Ou que os sonhos morreram e que o válido hoje é o “pragmatismo”
pedagógico, é o treino técnico-científico do educando e não sua formação de que já não se fala. Formação
que, incluindo a preparação técnico-científíca, vai mais além dela.
A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente aceitar que a globalização
da economia é uma invenção dela mesma ou de um destino que não poderia se evitar, uma quase
entidade metafísica e não um momento do desenvolvimento econômico submetido, como toda produção
econômica capitalista, a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que detêm o poder.
Fala-se, porém, em globalização da economia como um momento necessário da economia mundial a que
por isso mesmo, não é possível escapar. Universaliza-se um dado do sistema capitalista e um instante da
vida produtiva de certas economias capitalistas hegemônicas como se o Brasil, o México, a Argentina
devessem participar da globalização da economia da mesma forma que os Estados Unidos, a Alemanha, o
Japão. Pega-se o trem no meio do caminho e não se discutem as condições anteriores e atuais das
diferentes economias. Nivelam-se os patamares de deveres entre as distintas economias sem se
considerarem as distâncias que separam os “direitos” dos fortes e o seu poder de usufruí-los e a fraqueza
dos débeis para exercer os seus direitos. Se a globalização implica a superação de fronteiras, a abertura
sem restrições ao livre comércio, acabe-se então quem não puder resistir. Não se indaga, por exemplo, se
em momentos anteriores da produção capitalista nas sociedades que lideram a'globalização hoje elas
eram tão radicais na abertura que consideram agora uma condição indispensável ao livre comércio.
Exigem, no momento, dos outros, o que não fizeram consigo mesmas. Uma das eficácias de sua ideologia
fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de
que não há nada a fazer mas seguir a ordem natural dos faros. Pois é como algo natural ou quase natural
que a ideologia neoliberal se esforça por nos fazer entender a globalização e não como uma produção
histórica.
O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética
universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos,na verdade, por um mundo de
gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao
máximo, mesmo que modificada, da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O
discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e
verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neo-liberalismo
globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca.
Espero, convencido de que chegará o tempo em que, passada a estupefação em face da queda do muro
de Berlim, o mundo se refará e recusará a ditadura do mercado, fundada na perversidade de sua ética do
lucro.
Não creio que as mulheres e os homens do mundo, independentemente até de suas opções políticas, mas
sabendo-se e assumindo-se como mulheres e homens, como gente, não aprofundem o que hoje já existe
como uma espécie de mal-estar que se generaliza em face da maldade neoliberal. Mal-estar que terminará
por consolidar-se numa rebeldia nova em que a palavra crítica, o discurso humanista, o compromisso
solidário, a denúncia veemente da negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo
“genteficado” serão armas de incalculável alcance.
Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo
contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se Fazem a união e a rebelião das gentes contra a
ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à “fereza” da
ética do mercado.
É neste sentido que jamais abandonei a minha preocupação primeira, que sempre me acompanhou, desde
os começos de minha experiência educativa. A preocupação com a natureza humana* a que devo a minha
lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as suas palavras: já fundava a
minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses humanos. Nenhuma teoria da transformação
político-social do mundo me comove, sequer, se não parte de uma compreensão do homem e da mulher
enquanto seres fazedores da História e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção. Seres
éticos, mesmo capazes de transgredir a ética indispensável, algo de que tenho insistentemente “falado”
neste texto. Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saber-me um ser condicionado
mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento. A grande força sobre que alicerçar-se a nova
rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e
apenas aberta à gulodice do lucro. E a ética da solidariedade humana.
Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a apostar no ser
humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas 'agressivas e injustas c]e
quem transgride a própria ética. A liberdade do comércio não pode estar acima da liberdade do ser
humano. A liberdade de comércio sem limite é licenciosidade do lucro. Vira privilégio de uns poucos que,
em condições favoráveis, robustece seu poder contra os direitos de muitos, inclusive o direito de
sobreviver. Uma fábrica de tecido que fecha por não poder concorrer com os preços da produção asiática,
por exemplo, significa não apenas o colapso econômico-financeiro de seu proprietário que pode ter sido ou
não um transgressor da ética universal humana, mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e
trabalhadoras do processo de produção. E suas famílias? Insisto, com a força que tenho e que posso
juntar na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na realidade histórico-
social à pura adaptação a ela. O desemprego no mundo não é, como disse e tenho repetido, uma
fatalidade. É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços tecnológicos a que vem
*
Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança, Cartas à Cristina e Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro,
Paz e Terra.
faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e não do lucro e da gulodice
irrefreada das minorias que comandam o mundo.
O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às
necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico haveria
de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria
de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de
homens de perder seu trabalho deve-ria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do
atendimento das vítimas do progresso anterior. Como se vê, esta é uma questão ética e política e não
tecnológica. O problema me parece muito claro. Assim como não posso usar minha liberdade de fazer
coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos outros de fazer e de
ser, assim também não poderia ser livre para usar os avanços científicos e tecnológicos que levam
milhares de pessoas à desesperança. Não se trata, acrescentemos, de inibir a pesquisa e frear os avanços
mas de pô-los a serviço dos seres humanos. A aplicação de avanços tecnológicos com o sacrifício de
milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser transgressores da ética universal do
ser humano e o fazemos em favor de uma ética pequena, a do mercado, a do lucro.
Entre as transgressões à ética universal do ser humano, sujeitos à penalidade, deveria estar a que
implicasse a falta de trabalho a um sem-número de gentes, a sua desesperação e a sua morte em vida. A
preocupação, por isso mesmo, com a formação técnico-profissional capaz de reorientar a atividade prática
dos que foram postos entre parênteses, teria de multiplicar-se.
Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino mas sei quão difícil é a aplicação de uma política do
desenvolvimento humano que, assim, privilegie fundamentalmente o homem e a mulher e não apenas o
lucro. Mas sei também que, se pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos, o caminho
ético se impõe. Não creio em nada sem ele ou fora dele. Se, de um lado, não ode haver desenvolvimento
sem lucro este não pode ser, pó por outro, o objetivo do desenvolvimento, de que o fim último seria o
gozo imoral do investidor.
De nada vale, a não ser enganosamente para uma minoria que terminaria fenecendo também, uma
sociedade eficazmente operada por máquinas altamente “inteligentes”, substituindo mulheres e homens
em actividades as mais variadas, e milhões de Marias e Pedros sem ter o que fazer, e este é um risco
muito concreto que corremos.*
Não creio também que a política a dar carne a este espírito ético possa jamais ser a ditatorial,
contraditoriamente de esquerda ou coerentemente de direita. O caminho autoritário já é em si uma
contravenção à natureza inquietamente indagadora, buscadora, de homens e de mulheres que se perdem
ao perderem a liberdade. É exatamente por causa de tudo isso que, como professor, devo estar advertido
do poder do discurso ideológico, começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na verdade, só
ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a natureza ideológica do
discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso
ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos
fatos, das coisas, dos acontecimentos. Não podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica, discursos
como estes:
“ O negro é geneticamente inferior ao branco. É uma pena, mas é isso o que a ciência nos diz."
“Em defesa de sua honra, o marido matou a mulher.” “Que poderíamos esperar deles, uns baderneiros,
invasores de terra?”
“Essa gente é sempre assim: damos-lhe os pés e logo quer as mãos.
“Nós já sabemos o que o povo quer e do que precisa.-Perguntar-lhe seria uma perda de tempo.”
“O saber erudito a ser entregue às massas incultas é a sua salvação.”
*
MOERMANN, Joseph. Le Courrier – 8 Août, 1996 – Suisse La globalization de l'economie provoquera-telle
un mai 68 mondial? – La marmite mondiale sousf pression.
“Maria é negra, mas é bondosa e competente.”
“Esse sujeito é um bom cara. E nordestino, mas e sério e prestimoso.”
“Você sabe com quem está falando?”
“Que vergonha, homem se casar com homem, mulher se casar com mulher.
“É isso, você vai se meter com gentinha, e o que dá.
“Quando negro não suja na entrada, suja na saída.”
“O governo tem que investir mesmo é nas áreas onde mora gente que paga imposto.”
“Você não precisa pensar. Vote em fulano, que pensa por você.”
“Você, desempregado, seja grato. Vote em quem ajudou você. Vote em fulano de tal.”
“Está se vendo, pela cara, que se trata de gente fina, de trato, que tomou chá em pequeno e não de um
pérapado qualquer.”
“O professor falou sobre a Inconfidência Mineira.”
“O Brasil foi descoberto por Cabral.”
No exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideologia, vou gerando certas qualidades
que vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente. A necessidade desta resistência crítica,
por exemplo, me predispõe, de um lado, a uma atitude sempre aberta aos demais, aos dados da
realidade; de outro, a uma desconfiança metódica que me defende de tornar-me absolutamente certo das
certezas. Para me resguardar das artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem
tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva
e desperta a minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de
forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita
como proprietário da verdade. No fundo, a atitude correra de quem não se sente dono da verdade nem
tampouco objeto acomodado do discurso alheio que lhe é autoritariamente feito. Atitude correra de quem
se encontra em permanente disponibilidade a tocar e a ser tocado, a perguntar e a responder, a concordar
e a discordar. Disponibilidade à vida e a seus contratempos. Estar disponível é estar sensível aos
chamamentos que nos chegam, aos sinais mais diversos que nos apeiam, ao canto do pássaro, à chuva
que cai ou que se anuncia na nuvem escura, ao riso manso da inocência, à cara carrancuda da
desaprovação, aos braços que se abrem para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa. É na minha
disponibilidade permanente à vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade,
desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais
me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e
construo meu perfil.
3.8 – Ensinar exige disponibilidade para o diálogo
Nas minhas relações com os outros, que não fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz, no nível
da política, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso partir de que devo “conquistá-los”, não importa
a que custo, nem tampouco temo que pretendam “conquistar-me”. É no respeito às diferenças entre mim
e eles ou elas, na coerência entre o que faço e o que digo, que me encontro com eles ou com elas. É na
minha disponibilidade à realidade que construo a minha segurança, indispensável à própria
disponibilidade. É impossível viver a disponibilidade à realidade sem segurança mas é impossível cambem
criar a segurança fora do risco da disponibilidade.
Como professor não devo poupar oportunidade para testemunhar aos alunos a segurança com que me
comporto ao discutir um tema, ao analisar um fato, ao expor minha posição em face de uma decisão
governamental. Minha segurança não repousa na falsa suposição de que sei tudo, de que sou o “maior”.
Minha segurança se funda na convicção de que sei algo e de que ignoro algo a que se junta a certeza de
que posso saber melhor o que já sei e conhecer o que ainda não sei. Minha segurança se alicerça no saber
confirmado pela própria experiência de que, se minha inconclusão, de que sou consciente, atesta, de um
lado, minha ignorância, me abre, de outro, o caminho para conhecer.
Me sinto seguro porque não há razão para me envergonhar por desconhecer algo. Testemunhar a abertura
aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa.
Viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento, tomar a própria
prática de abertura ao outro como objeto da reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. A
razão ética da abertura, seu funda-mento político, sua referência pedagógica; a boniteza que há nela
como viabilidade do diálogo. A experiência da abertura como experiência fundante do ser inacabado que
terminou por se saber inacabado. Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos
outros à procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros
se torna transgressão ao impulso natural da incompletude.
O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se
confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História.
Certa vez, numa escola da rede municipal de São Paulo que realizava uma reunião de quatro dias com
professores e professoras de dez escolas da área para planejar em comum suas atividades pedagógicas,
visitei uma sala em que se expunham fotografias das redondezas da escola. Fotografias de.ruas
enlameadas, de ruas bem postas também. Fotografias de recantos feios que sugeriam tristeza e
dificuldades. Fotografias de corpos andando com dificuldade, lentamente, alquebrados, de caras desfeitas,
de olhar vago. Um pouco atrás de mim dois professores faziam comentários em torno do que lhes tocava
mais de perto. De repente, um deles afirmou: “Há dez anos ensino nesta escola. Jamais conheci nada de
sua redondeza além das ruas que lhe dão acesso. Agora, ao ver esta exposição* de fotografias que nos
revelam um pouco de seu contexto, me convenço de quão precária deve ter sido a minha tarefa
formadora durante todos estes anos. Como ensinar, como formar sem estar aberto ao contorno
geográfico, social, dos educandos?”
A formação dos professores e das professoras devia insistir na constituição deste saber necessário e que
me faz certo desta coisa óbvia, que é a importância inegável que tem sobre nós o contorno ecológico,
social e econômico em que vivemos. E ao saber teórico desta influência teríamos que juntar o saber
teórico-prático da realidade concreta em que os professores trabalham. Já sei, não há dúvida, que as
condições materiais em que e sob que vivem os educandos lhes condicionam a compreensão do próprio
mundo, sua capacidade de aprender, de responder aos desafios. Preciso, agora, saber ou abrir-me à
realidade desses alunos com quem partilho a minha atividade pedagógica. Preciso tornar-me, se não
absolutamente íntimo de sua forma de estar sendo, no mínimo, menos estranho e distante dela. E a
diminuição de minha estranheza ou de minha distância da realidade hostil em que vivem meus alunos não
é uma questão de pura geografia. Minha abertura à realidade negadora de seu projeto de gente é uma
questão de real adesão de minha parte a eles e a elas, a seu direito de ser. Não é mudando-me para uma
favela que provarei a eles e a elas minha verdadeira solidariedade política sem falar ainda na quase certa
perda de eficácia de minha luta em função da mudança mesma. O fundamental é a minha decisão ético-
política, minha vontade nada piegas de intervir no mundo. É o que Amilcar Cabral chamou “suicídio de
classe” e a que me referi, na Pedagogia do Oprimido, como páscoa ou travessia. No fundo, diminuo a
distância que me separa das condições malvadas em que vivem os explorados, quando, aderindo
realmente ao sonho de justiça, luto pela mudança radical do mundo e não apenas espero que ela chegue
porque se disse que chegará. Diminuo a distância entre mim e a dureza de vida dos explorados não com
discursos raivosos, sectários, que só não são ineficazes porque dificultam mais ainda meus alunos,
diminuo a distância que me separa de suas condições negativas de vida na medida em que os ajudo a
aprender não importa que saber, o do torneiro ou o do cirurgião, com vistas à mudança do mundo à
superança das estruturas injustas, jamais com vistas à sua imobilização.
O saber alicerçante da travessia na busca da diminuição da distância entre mim e a perversa realidade dos
explorados é o saber fundado na ética de que nada legitima a exploração dos homens e das mulheres
pelos homens mesmos ou pelas mulheres. Mas, este saber não basta. Em primeiro lugar, é preciso que ele
seja permanentemente tocado e empurrado por uma calorosa paixão que o faz quase um saber
arrebatado. É preciso também que a ele se somem saberes outros da realidade concreta, da força da*
As fotos que compunham a exposição haviam sido feitas por um grupo de professoras da área. ideologia; saberes técnicos, em diferentes áreas, como a da comunicação. Como desocultar verdades
escondidas, como desmistificar a farsa ideológica, espécie de arapuca atraente em que facilmente caímos.
Como enfrentar o extraordinário poder da mídia, da linguagem da televisão, de sua “sintaxe” que reduz a
um mesmo plano o passado e o presente e sugere que o que ainda não há já está feito. i%aís ainda, que
diversifica temáticas no noticiário sem que haja tempo para a reflexão sobre os variados assuntos. De
uma notícia sobre Miss Brasil se passa a um terremoto na China; de um escândalo envolvendo mais um
banco dilapidado por diretores inescrupulosos temos cenas de um trem que descarrilou em Zurique.
O mundo encurta, o tempo se dilui: o ontem vira agora; o amanhã já está feito. Tudo muito rápido.
Debater o que se diz e o que se mostra e como se mostra na televisão me parece algo cada vez mais
importante.
Como educadores e educadoras progressistas não apenas não podemos desconhecer a televisão mas
devemos usá-la, sobretudo, discuti-la.
Não temo parecer ingênuo ao insistir não ser possível pensar sequer em televisão sem ter em mente a
questão da consciência crítica. É que pensar em televisão ou na mídia em geral nos põe o problema da
comunicação, processo impossível de ser neutro. Na verdade, toda comunicação é comunicação de algo,
feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum ideal contra algo e contra
alguém, nem sempre claramente referido. Daí também o papel apurado que joga a ideologia na
comunicação, ocultando verdades mas também a própria ideologização no processo comunicativo. Seria
uma santa ingenuidade esperar de uma emissora de televisão do grupo do poder dominante que,
noticiando uma greve de metalúrgicos, dissesse que seu comentário se funda nos interesses patronais.
Pelo contrário, seu discurso se esforçaria para convencer que sua análise da greve leva em consideração
os interesses da nação.
Não podemos nos pôr diante de um aparelho de televisão “entregues” ou “disponíveis” ao que vier.
Quanto mais nos sentamos diante da televisão – há situações de exceção – como quem, em férias, se
abre ao puro repouso e entretenimento, tanto mais risco corremos de tropeçar na compreensão de fatos e
de acontecimentos. A postura crítica e desperta nos momentos necessários não pode faltar.
O poder dominante, entre muitas, leva mais uma vantagem sobre nós. E que, para enfrentar o ardil
ideológico de que se acha envolvida a sua mensagem na mídia, seja nos noticiários, nos comentários aos
acontecimentos ou na linha de certos programas, para não falar na propaganda comercial, nossa mente
ou nossa curiosidade teria de funcionar epistemologicamente todo o tempo. E isso não é fácil. Mas, se não
é fácil estar permanentemente em estado de alerta é possível saber que não sendo um demô nio que nos
espreita para nos esmagar, o televisor diante do qual nos achamos não é tampouco um instrumento que
nos salva. Talvez seja melhor contar de um a dez antes de fazer a afirmação categórica a que Wright
Mills* se refere: “É verdade, ouvi no noticiário das vinte horas.”
3.9 – Ensinar exige querer bem aos educandos
E o que dizer, mas sobretudo que esperar de mim, se, como professor, não me acho tomado por este
outro saber, o de que preciso estar aberto ao gosto de querer bem, às vezes, à coragem de querer bem
aos educandos e à própria prática educativa de que participo. Esta abertura ao querer bem não significa,
na verdade, que, porque professor me obrigo a querer bem a todos os alunos de maneira igual. Significa,
de fato, que a afetividade não me assusta, que não tenho medo de expressá-la. Significa esta abertura ao
querer bem a maneira que tenho de autenticamente selar o meu compromisso com os educandos, numa
pratica específica do ser humano. Na verdade preciso descartar como falsa a separação radical entre
seriedade docente e efetividade. Não é certo, sobretudo do ponto de vista democrático, que serei tão
melhor professor quanto mais severo, mais frio, mais distante e "cinzento” me ponha nas minhas relações
com os alunos, no trato dos objetos cognoscíveis que devo ensinar. A afetividade não se acha excluída da
cognoscibilidade. O que não posso obviamente permitir é que minha afetividade interfira no cumprimento
ético de meu dever de professor no exercício de minha autoridade. Não posso condicionar a avaliação do
trabalho escolar de um aluno ao maior ou menor bem querer que tenha por ele.
*
Mills, Wright. A elite do poder.
A minha abertura ao querer bem significa a minha disponibilidade à alegria de viver. Justa alegria de
viver, que, assumida plenamente, não permite que me transforme num ser “adocicado” nem tampouco
num ser arestoso e amargo.
A atividade docente de que a discente não se separa é uma experiência alegre por natureza. E falso
também tomar como inconciliáveis seriedade docente e alegria, como se a alegria fosse inimiga da
rigoridade. Pelo contrário, quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e na minha
docência, tanto mais alegre me sinto e esperançoso também. A alegria não chega apenas no encontro do
achado mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora
da boniteza e da alegria. O desrespeito à educação, aos educandos, aos educadores e às educadoras
corrói ou deteriora em nós, de um lado, a sensibilidade ou a abertura ao bem querer da própria prática
educativa de outro, a alegria necessária ao que-fazer docente. É digna de nota a capacidade que tem a
experiência pedagógica para despertar, estimular e desenvolver em nós o gosto de querer bem e o gosto
da alegria sem a qual a prática educativa perde o sentido. É esta força misteriosa, às vezes chamada
vocação, que explica a quase devoção com que a grande maioria do magistério nele permanece, apesar
da imoralidade dos salários. E não apenas permanece, mas cumpre, como pode, seu dever.
Amorosamente, acrescento.
Mas é preciso, sublinho, que, permanecendo e amorosamente cumprindo o seu dever, não deixe de lutar
politicamente, por seus direitos e pelo respeito à dignidade de sua tarefa, assim como pelo zelo devido ao
espaço pedagógico em que atua com seus alunos.
É preciso, por outro lado, reinsistir em que não se pense que a prática educativa vivida com afetividade e
alegria, prescinda da formação científica séria e da clareza política dos educadores ou educadoras. A
prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da
mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje. É exatamente esta permanência do hoje
neoliberal que a ideologia contida no discurso da “morte da História” propõe. Permanência do hoje a que o
futuro desproblematizado se reduz. Daí o caráter desesperançoso, fatalista, antiutópico de uma tal
ideologia em que se forja uma educação friamente tecnicista e se requer um educador exímio na tarefa de
acomodação ao munido e não na de sua transformação. Um educador com muito pouco de formador, com
muito mais de treinador, de transferidor de saberes, de exercitador de destrezas.
Os saberes de que este educador "pragmático” necessita na sua prática não são os de que venho falando
neste livro. A mim não me cabe falar deles, os saberes necessários ao educador “pragmático” neoliberal
mas, denunciar sua atividade anti-humanista.
O educador progressista precisa estar convencido como de suas conseqüências é o de ser o seu trabalho
uma especificidade humana. Já vimos que a condição humana fundante da educação é precisamente a
inconclusão de nosso ser histórico de que nos tornamos conscientes. Nada que diga respeito ao ser
humano, à possibilidade de seu aperfeiçoamento físico e moral, de sua inteligência sendo produzida e
desafiada, os obstáculos a seu crescimento, o que possa fazer em favor da boniteza do mundo como de
seu enfeamento, a dominação a que esteja sujeito, a liberdade por que deve lutar, nada que diga respeito
aos homens e às mulheres pode passar despercebido pelo educador progressista. Não importa com que
faixa etária trabalhe o educador ou a educadora. O nosso é um trabalho realizado com gente, miúda,
jovem ou adulta, mas gente em permanente processo de busca. Gente formando-se, mudando,
crescendo, reorientando-se, melhorando, mas, porque gente, capaz de negar os valores, de distorcer-se,
de recuar, de transgredir. Não sendo superior nem inferior a outra prática profissional, a minha, que é a
prática docente, exige de mim um alto nível de responsabilidade ética de que a minha própria capacitação
científica faz parte. É que lido com gente. Lido, por isso mesmo, independente-mente do discurso
ideológico negador dos sonhos e das utopias, com os sonhos, as esperanças tímidas, às vezes, mas às
vezes, fortes, dos educandos. Se não posso, de um lado, estimular os sonhos impossíveis, não devo, de
outro, negar a quem sonha o direito de sonhar. Lido com gente e não com coisas. E porque lido com
gente, não posso, por mais que, inclusive, me dê prazer entregar-me à reflexão teórica e crítica em torno
da própria prática docente e discente, recusar a minha atenção dedicada e amorosa à problemática mais
pessoal deste ou daquele aluno ou aluna. Desde que não prejudique o tempo normal da docência, não
posso fechar-me a seu sofrimento ou à sua inquietação porque não sou terapeuta ou assistente social.
Mas sou gente. O que não posso, por uma questão de ética e de respeito profissional, é pretender passar
por terapeuta. Não posso negar a minha condição de gente de que se alonga, pela minha abertura
humana, uma certa dimensão terápica.
Foi convencido disto que, desde jovem, sempre marchei de minha casa para o espaço pedagógico onde
encontro os alunos, com quem comparto a prática educativa, Foi sempre como prática de gente que
entendi o que-fazer docente. De gente inacabada, de gente curiosa, inteligente, de gente que pode saber,
que pode por isso ignorar, de gente que, não podendo passar sem ética se tornou contra ditoriamente
capaz de transgredi-la. Mas, se nunca idealizei a prática educativa, se em tempo algum a vi como algo
que, pelo menos, parecesse com um que-fazer de anjos, jamais foi fraca em mim a certeza de que vale a
pena lutar contra os descaminhos que nos obstaculizam de ser mais. Naturalmente, o que de maneira
permanente me ajudou a manter esta certeza foi a compreensão da História como possibilidade e não
como determinismo, de que decorre necessariamente a importância do papel da subjetividade na História,
a capacidade de comparar, de analisar, de avaliar, de decidir, de romper e por isso tudo, a importância da
ética e da política.
É esta percepção do homem e da mulher como seres “programados, mas para aprender” e, portanto, para
ensinar, para conhecer, para intervir, que me faz entender a prática educativa como um exercício
constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos. Como
prática estritamente humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em
que os sentimentos e as emoções desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por um de de ditadura
reacionalista. Nem tampouco compreendi a prática educativa como uma experiência que faltasse o rigor
em que se gera a necessária disciplina intelectual.
Estou convencido, porém, de que a rigorosidade séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade
epistemológica não me fazem necessariamente um se amado, arrogante, cheio de mim mesmo. Ou, em
palavras, não é a minha arrogância intelectual a que fala de minha rigorosidade científica. Nem a
arrogância é sinal de competência nem a competência é causa arrogância. Não nego a competência, por
outro lado, de arrogantes, mas lamento neles a ausência de simplicidade que, não diminuindo em nada
seu saber, os faria melhor. Gente mais gente.
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