Jornal da UFRJ março
2006 p.24 (por Joana Jahara)
Deus e o diabo de Guimarães Rosa
Há
50 anos Guimarães Rosa revolucionava a literatura brasileira com “Grande Sertão: Veredas”. Considerado pelos críticos como o principal romance
brasileiro do século XX, o livro inventou uma nova língua para traduzir a
epopeia sertaneja. A história do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por
Diadorim, é o centro da narrativa, que além de técnica e linguagem
surpreendentes, produz uma análise profunda dos conflitos psicológicos
presentes na história.
João
Guimarães rosa nasceu um Cordisburgo, centro-norte de Minas Gerais, em 1908.
Formou-se em Medicina e clinicou pelo interior do estado. Mas, a profissão não
foi o seu forte, nem a diplomacia, atividade que se dedicou a partir de 1934,
levado pelo domínio e interesse por idiomas. Em sua autoanálise, define que
“chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo
completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes
de minha vida e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico,
conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como
soldado, o valor da proximidade da morte.” Guimarães faleceu aos 59 anos, em
decorrência de um enfarte, três dias após tomar posse na Academia Brasileira de
Letras.
O
lançamento do romance “Grande Sertão: Veredas”,
em 1946, causou um grande impacto na crítica. Essa, acostumada a um outro tipo
de obra , de linguagem coloquial sóbria e narrativa de caráter social e
temática nordestina, de autores como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queiroz,
José Lins do Rego, entre outros da segunda geração modernista, chocou-se com as
inovações linguísticas do livro.Guimarães rosa, considerado um poeta da
terceira geração, foi acusado de se dedicar excessivamente à forma, à linguagem
, em detrimento do conteúdo.
Eduardo
Coutinho, professor do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de
letras/ UFRJ e estudioso de Guimarães, afirma que a acusação de ser conservador
e alienado foi revista pela crítica posteriormente: “em princípio, não se havia
percebido que essas inovações formais implicavam em algo muito mais amplo”. “A
sua proposta era de caráter estético-político, onde a intenção era de parar,
pensar e refletir sobre as estruturas estabelecidas, verdades até então consideradas
inquestionáveis”.
Exemplos
de trechos do livro não faltam para entender que as inovações postas por
Guimarães rosa ocorrem em todos os estratos da linguagem. Seja no plano do
léxico, da sintaxe, da morfologia e também do fonético. “Em uma análise de caso
morfolexical (morfológico e de vocabulário), logo no início do livro, o leitor
se depara com a palavra sozinhozinho. Ele a estranha, porque ela não faz parte
da norma corrente da linguagem. Esse estranhamento faz com que se pare um pouco
a leitura e pense sobre qual o sentido em reduplicar o sufixo. A intenção é mostrar
que a palavra sozinho é diferente de só. Isso é fascinante no Grande Sertão,
porque são essas mudanças que alteram inclusive o plano da estrutura narrativa”,
analisa Coutinho.
O
romance é formado inteiramente a partir da linguagem e é ela que dá vazão às
ações e justifica as façanhas dos jagunços, em um tempo indeterminado, mas num
espaço definido, na fronteira entre Minas Gerais, Bahia, e Goiás. É o sertão de
Guimarães rosa, mítico, diferente do sertão circunscrito cientificamente por
Euclides da Cunha, em Os Sertões (1902), livro que, de acordo com Eduardo
Coutinho, é remetido com uma certa frequência.
Ser e não ser
Para
compreender a intenção de Guimarães rosa é preciso ir além. O ritmo do livro se
diferencia em certos momentos, ora acelerado, ora lento, na mistura entre prosa
e poesia. Elementos excludentes parecem se completar: Deus e o diabo, céu e
terra, dia e noite, amor e violência, o bem e o mal, e a morte. “É uma
formidável indagação sobre tudo isso, que vem de toda uma tradição literária.
Afinal, o diabo existe? É a pergunta que ele faz no livro. O protagonista
Riobaldo se pergunta o tempo todo sobre o estranho sentimento que nutre em
relação ao jagunço Diadorim (na verdade, uma mulher disfarçada de guerreiro
para vingar a morte do pai). Não ter percebido que era uma mulher é o que mais
o atormenta. Para Guimarães Rosa, faz parte do aprendizado saber que é preciso
haver distanciamento para enxergar uma devida situação”, afirma Eduardo
Coutinho. O Grande Sertão: Veredas
conta com a experiência biográfica do autor. Foi na região que ele cresceu.
Relatar com um distanciamento o faz entender e também descobrir situações
ocorridas quando era jovem.
O
olhar roseano desmonta toda uma tradição que sustenta a modernidade ocidental e
que vem sendo posta desde o início do século XX. Põe em xeque a perspectiva excludente da
lógica cartesiana a tradicional: ”as coisas são ou não são. Isto é ou não é. To
be or is not to be. No Grande Sertão, uma espécie de lógica inclusiva vai se
opor a esse pensamento. Ao invés do ser ou não ser, tudo passa a ser e não ser.
Com base nisso pode-se dizer da relação ente Riobaldo e Diadorim: é e não é
homossexual, é mulher e não é (inserindo o papel do sexto sentido), como todas
as dúvidas de Riobaldo que são e não são”, analisa Coutinho. O que existe é o
homem humano atravessado por espantos e perplexidades onde o bem e o mal, ao
invés de se oporem, acabem se completando. Enfim, eternas contradições humanas.
O diabo existe.
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