De olho na prática:
Conversa vai, escrita vem
Assunto:
Reescrita
Autor(a):
Luciene Juliano Simões, NPL nº 21
Luciene Juliano Simões
Bruna Sommer Farias
Muitos têm dito que se aprende a escrever escrevendo. Contudo, essa é uma
verdade que pode esconder muito do que se desenrola neste “escrevendo”, tão
processual. Escrever está muito distante de ser um ato linear. Uma das notáveis
características da prática da escrita é que ela se dá num vaivém, e um dos
personagens principais da história da produção de um texto de qualidade é, sem
dúvida, a conversa do autor com o próprio texto. Dessa interação autor-texto
vão surgindo os cortes, as reformulações, os acréscimos. Lá pelo final da
costura são decididos os arremates: uma última revisão, ou um último dedo de
prosa do autor com seu texto, proporciona aquele capricho que entrevemos em
todo bom resultado... Mas será que podemos, desde sempre, interagir com o nosso
texto sem um terceiro? Ter um leitor solidário, além dele mesmo, pode ser uma
vantagem enorme para um autor. E quando, em lugar de falar na prática de
escrever, falamos em aprender a escrever, parece que essa conversa entre texto,
autor e o terceiro precisa ficar mais audível e mais concreta, não é mesmo?
Vamos
então reformular: aprende-se a escrever escrevendo e interagindo em torno dos
vários textos de que será feito o texto final. O professor que está de olho em
sua prática sempre pergunta a si mesmo: “Como posso potencializar minhas
interações com minha turma?”. Afinal, ele sabe que nisso está a chave. Conversa
vai, conversa vem, e temos a beleza da docência: a construção conjunta do
conhecimento que será de todos e de cada um. Escrever é um desses conhecimentos:
não é um dom, é algo que se pode ensinar e aprender numa boa conversa, que
precisa se tornar constante no processo de escrita e reescrita na sala de aula.
Surge
aí um desafio que todos nós, professores, enfrentamos cotidianamente. Ao
receber os textos de nossos estudantes em sua primeira versão, logo
reconhecemos como cada um deles parece nos assaltar com demandas heterogêneas.
Um não encontrou seu questionamento central e está disperso, longo, com saltos
de tópico em tópico; outro parece não se dar conta de que terá um leitor
distante e escreve como se ele estivesse dentro de sua mente – tudo muito breve
e cheio de lacunas. Na tentativa de escrever um poema, um parece não escutar as
palavras e está preso ao sentido, enquanto o outro cobre seu poema de rimas,
mas não parece dar ao texto uma unidade que o reverta em sentido poético.
Enfim, de texto em texto constrói-se o quebra-cabeça: como vou conversar com
tantos de uma só vez, no espaço das poucas aulas que temos, e intervir de modo
eficaz, ajudando os estudantes a aprimorar sua escrita? Nosso convite a vocês,
então, é o seguinte: “Que tal mandar bilhetes, um para cada aluno, cochichando
ao pé do ouvido sobre o futuro do seu texto?”.
■
O bilhete orientador da reescrita: um gênero catalisador a serviço da
aprendizagem
A
ideia de estimular e orientar os alunos a reescrever seu texto por meio de
bilhetes está ligada à certeza de que a fase de aprimoramento em uma atividade
escolar de escrita é crucial. Ao intervir de modo diferenciado, dispensando a cada
estudante a atenção que ele demanda, o professor pode mediar, ou “catalisar”, a
aprendizagem da escrita de um gênero discursivo. Mandar bilhetes é uma prática
pedagógica dinamizadora, a ser incorporada de modo constante na aula de
português, porque proporciona ao par aluno-professor um momento de diálogo mais
individualizado, além de tornar a língua escrita uma forma de interação entre
professor e aluno, o que é mais um ganho, considerando-se a função que a escola
tem para o letramento de seus estudantes.
Dito
isso, como se caracterizam esses bilhetes? O que é importante haver neles para
que realizem o trabalho de orientar e dinamizar, proporcionando foco e eficácia
à atividade do aluno de refletir sobre seu texto para aprimorá-lo?
■
Um leitor interessado
O
primeiro passo é colocar-se diante do texto do aluno como um leitor
interessado. Ao ler o texto, o que aprendo com ele? De que modo me toca e aguça
meu desejo de saber mais e melhor? Temos uma forte tendência a olhar o texto
com olhos de avaliador, sem permitir que antes de tudo ele nos intrigue. Isso
torna difícil aos alunos irem reafirmando, ao escrever, a natureza de diálogo
inerente a todo o uso da linguagem. Então, aproveite o bilhete para dialogar
com o texto e com o aluno-autor. Isso pode ficar manifesto no bilhete por meio
de características dele que estão mais ligadas ao sentido do que à forma.
Algumas das principais são as seguintes:
•
Elogiar ou destacar os pontos fortes do texto, pois são eles que nos tocam como
leitores.
•
Partir dos pontos fortes para pedir mais, fazendo perguntas que favoreçam o
entendimento do ponto de vista do autor ou mesmo que solicitem o detalhamento
do texto, quando este pode ser mais informativo ou eloquente.
•
Mostrar que o texto do aluno nos lembra outros escritos e evoca uma tradição de
boa escrita ligada ao gênero.
Veja
exemplos disso em alguns bilhetes escritos por Bruna aos alunos dela quando
estavam engajados em uma experiência de escrita de poemas para publicação em
um blog da escola.
Júlia,
teu poema está legal, mas podes falar mais sobre o tema da última estrofe. É
fácil ser feliz? O que nos faz felizes? Dizer sim a quem? Aos amigos? À
bondade? Dizer não à mentira? À falsidade? O que te faz feliz? Podes falar mais
sobre isso ao final, ou descrever um pouco como é a sociedade, na primeira
estrofe, as crianças, na segunda estrofe, e a natureza, na terceira. A
sociedade vive em paz? Se ajuda? As crianças brincam, cantam, dão risada? E a
natureza, é bela?
Alexander,
teu poema está muito bonito. Mas, se quiseres, podes falar mais sobre o que
mais há na natureza ou colocar adjetivos pra enriquecê-lo. Como são as flores?
De que cores são? Têm perfumes agradáveis? E os pássaros, têm cantos que
encantam? Estão alegres? O rio tem águas claras? Límpidas?
Sandro
Miguel, o que queres dizer com “aprendi minha lição” no final do poema? Fala
mais sobre isso que você aprendeu: que não pode ficar sem o Opala? Que ele é
melhor que o Gol, ou que qualquer carro? O que você sente estando dentro do
carro? Poderoso? Orgulhoso de ter um carro assim? Como ele é? Que cor tem? É
lustroso? As pessoas notam quando você passa com ele na rua? Desenvolve mais
essas ideias.
Maria
Paula, o assunto que escolheste é bastante polêmico, mas muito importante para
os jovens. Tu podes descrever o que sucede com quem entra nesse mundo, porque
no poema tu citas o que acontece com quem não aceita a droga. A pessoa tem
controle de si? Ela é feliz? Podes falar do sofrimento da família do viciado ou
falar mais da alegria de quem vive sem drogas, no final do poema.
Valentina,
muitos poetas escreveram sobre o ato de escrever poesia. Tu poderias contar
como é difícil ter uma ideia e transformá-la em verso. Quem sabe poderias
descrever sobre o que falam os poemas, seus diversos temas e formas. São
grandes ou pequenos? Os versos sempre rimam? Falam de sentimentos, emoções,
tristeza ou alegria? O que você acha?
Enfim,
como aqui estamos falando de sentidos, a multiplicidade é a regra. Mas fica um
primeiro princípio – antes de tudo, escrevemos textos para que sejam lidos, e o
bilhete orientador pode ser um poderoso instrumento pedagógico para mediar a
construção desse conhecimento pelos estudantes. Se o professor se manifesta
como um leitor, ao reescrever, o aluno se constituirá em autor. Assim, a
reescrita dele vai começar respondendo às dúvidas do leitor e reagir aos
destaques que esse leitor dá a aspectos do texto. Só na continuidade do projeto
é que começa o trabalho sobre as escolhas linguísticas e a forma.
■
Um mediador mais experiente
Um
bilhete orientador que apenas faça o trabalho de concretizar a presença do
leitor e que privilegie a interlocução entre o professor, leitor interessado, e
o aluno, autor atento, entretanto, não garante que o aluno construa a eficácia
em sua escrita. Para isso, é preciso conhecer o gênero, ter um repertório
discursivo sólido que guie o autor por escolhas linguísticas pertinentes. Aqui
entra a função de professor: se os alunos ainda não têm esse repertório, é
nosso papel auxiliá- los em sua aprendizagem. O bilhete pode ser um bom espaço
de diálogo para que o professor ofereça a cada aluno a tarefa mais importante
para que ele se lance na descoberta linguística que mais vai qualificar o texto
naquele momento. Para conseguir cumprir essa função, é importante que o
professor atue num espaço de planejamento que vai além do momento de escrever
aquele bilhete. A eficácia do bilhete orientador depende muito de seu
funcionamento como elo numa corrente de tarefas que unem os seguintes
elementos: a escrita inicial, os critérios de avaliação ligados a ela, a
avaliação de cada passo e a elaboração de uma nova tarefa. Em resumo, o bilhete
deixa claro o trabalho de reescrita que pode aprimorar o texto. Para alcançar
essa clareza, o professor precisa:
•
Ter planejado bem o projeto de trabalho: qual o gênero – quem escreve para
quem, com que propósito e em que situação de interlocução?
• Ter conseguido tornar esse projeto claro aos alunos: com que propósito
escrevo e para quem? O que sei sobre o que escrevo e o que preciso
aprender?
• Ter explicitado os critérios de avaliação dos textos a serem aprimorados:
como se caracteriza um bom texto neste gênero?
• Ter realizado uma avaliação do texto que será motivo de intervenção por meio
de bilhete: como está este texto em relação aos critérios de qualidade?
• Escrever o bilhete de modo a formular com clareza uma tarefa de reescrita que
aproxime o texto dos critérios de qualidade estabelecidos anteriormente.
Nessa
etapa do trabalho, os bilhetes passam a integrar questões de sentido à
composição do texto e aos detalhes de uso da língua, sem deixar de preservar as
marcas do autor. Nessa hora, o professor precisa novamente partir, e muitas
vezes, dos pontos fortes do texto e pedir mais. A consideração dos pontos
fortes tende a preservar a voz do aluno: aprimorar um texto não é perder a
singularidade! Já as novas tarefas de reescrita, ou seja, as solicitações de
reformulação, estão mais relacionadas ao repertório de usos ligados àquele
gênero, que muitas vezes os alunos desconhecem ou, se conhecem, controlam de
modo imperfeito. Novamente, vamos dar uma olhada em alguns exemplos entre os
bilhetes da professora Bruna.
Luiz,
tu tens duas estrofes sobre temas um pouco diferentes. Que tal juntá-los num
todo coerente? Antes de ganhar o cinturão, o boxeador era infeliz? Ninguém
reconhecia seus talentos? Nem a menina solteira? E depois de ganhar ele foi um
vencedor só no espor te ou passou a vencer na vida, confiando mais em si? E a
menina, se interessou por ele depois de ele se tornar vencedor?
Lucca,
usaste muito bem as comparações e metáforas que discutimos em aula. Agora, que
tal fazermos mais umas estrofes? Podes falar sobre as outras coisas que vês no
céu, como pássaros, vento, trovões, ou sobre o próprio céu. Como ele é? De que
cor ele é? Ao que isso se compara? Se qu iseres, também podes continuar falando
das nuvens. Já falaste de como elas são brancas e fofinhas, mas elas também
ficam bastante escuras...
Mário,
teu poema está bom, mas pensa no sentido das rimas. O que o quero-quero tem a
ver com querer a menina? Você se sente leve? Se sente voando longe, no céu? Tem
vontade de cantar? Escreve isso pra deixar mais claro. E o que tu queres dizer
com “a vida é um anexo”? Lembra que as rimas têm que ter sentido. Quem sabe
outra palavra? Se isso não é importante para o poema, podes colocar outros
versos. Se você quer a menina, como pode beijá-la pensando na Ane? Talvez essa
parte não esteja de acordo com o resto do poema. Podes falar mais sobre o que
você faria para conseguir ficar com ela, como no final do poema: dançaria tango
no teto, tiraria água do deserto, e que mais?
■
Um parceiro conhecido e solidário
Por
fim, é preciso lembrar sempre que esse texto escrito, pertencente à atividade
pedagógica, é um bilhete orientador. O que faz dele um bilhete, afinal? É claro
que não se confunde com os bilhetes que trocamos em casa, nem com o correio
amoroso ou jocoso que circula entre os alunos... Mas não se pode perder de
vista que há boas razões para se ter nomeado esse gênero de bilhete. Algumas
pistas para isso estão nos interlocutores, no propósito, na composição e no
estilo dos bilhetes, de modo geral. Bilhetes são textos curtos, que sinalizam
de diversas maneiras que o locutor e o destinatário se conhecem e conhecem uma
situação externa ao texto que lhes é comum; além disso, servem ao propósito de
realizar ações conjuntas da vida cotidiana que são necessárias ou desejadas,
mas que não podem ser comunicadas pela conversa oral, face a face, por alguma
razão. Ou seja, mandamos bilhetes para lembrar, pedir, avisar, dar recados
etc., para aqueles com quem convivemos muito, e até intimamente, quando fica
difícil encontrar esse alguém. Não é mesmo perfeito para os nossos propósitos?
Tudo
começa com o que chamamos de desafio ou quebra- -cabeça: queremos estar com
cada um de nossos alunos no empreendimento comum e (re)conhecido de escrever um
texto, mas não temos condições de estar com cada um deles no período da aula.
Note que nos bilhetes esse conhecimento mútuo sobre a situação e a construção
da reescrita como meta comum aparece em vários índices. A professora fala do
texto como um conhecimento compartilhado por ambos – menciona trechos ou ideias
do texto que ela e seu aluno conhecem sem precisar mostrar ou copiar. Ela dá
recados ou dicas, que são expressos como possibilidades – “podes” ou “que tal”
– e ainda faz perguntas. Em seus bilhetes, ela chega até a expressar que a
reescrita é algo que farão juntos: “Agora, que tal fazermos mais umas
estrofes?”.
Além
disso, os bilhetes são curtos e sempre têm uma ou outra pitada de
informalidade: tratam o interlocutor de modo bem direto, como uso de “tu”
alternado com “você”, bem ao gosto da fala; espalham um “pro” ou “pra” aqui e
ali etc. Tudo isso vai autorizando o locutor a ser diretivo às vezes, como em
“Deixa isso mais claro pro teu leitor”. O imperativo, contudo, não torna esse
locutor um julgador que desqualifica o texto, como em muitas correções com que
convivemos! O bilhete converte o professor no companheiro de um fazer cotidiano
que faz parte da vida – escrever –, e isso lhe dá o direito de pedir certas
coisas de modo bem direto.
Enfim,
depois de ler a primeira e a segunda versão do poema escolar “Jogar bola” e o
bilhete orientador que suscitou a primeira reescrita, experimente com seus
alunos essa produtiva mistura de avaliação, ensino e companheirismo. É certo
que você vai conseguir catalisar muita aprendizagem!
Jogar
bola
(versão 1)
Eu gosto de jogar bola
Mas não sou muito bom
Só jogo por diversão
Jogo no gol com muita garra no coração
Sempre tento fazer gol, sem desistir
Quando faço um gol nunca esqueço de sorrir
Jogar bola é legal
Ainda mais porque é uma maneira de se divertir
Alberto,
jogar bola é legal, porque é uma maneira de se divertir. Mas o que mais pode
significar jogar bola? Estar com os amigos? Fazer exercício? Que tal falar um
pouco disso no poema? Se você quiser, também pode descrever o que acontece no
jogo. Por que você não é muito bom? Quando você joga no gol, o que você tenta
evitar? E quando você tenta fazer gol o que mais você sente? Coragem? Força de
vontade? Sugestões de palavras e temas: persistência, superação do medo,
euforia, espírito de grupo, time, comemorar, aplausos, torcida.
Jogar
bola
(versão 2, primeira reescrita)
Eu gosto de jogar bola
Mas não sou muito bom
Não tenho muita coordenação
Mas só jogo por diversão
Jogo no gol com muita garra no coração.
O chute é forte, mas eu tenho determinação.
Tenho que defender meu time em qualquer ocasião.
Para jogar futebol não pode ter medo.
Tem que ter espírito de grupo
Senão o time perde tudo
Sempre tento fazer gol, sem desistir.
Quando eu faço um gol, nunca me esqueço de sorrir.
Tem dias que não estou muito bom
Mas deixa, porque meus amigos fazem gol
Quando alguém faz um gol, é só alegria, todo time fica feliz
Jogar bola é legal
Ainda mais porque é uma maneira de se divertir
Vou continuar e treinar
Fazer muitos gols pra torcida delirar!
Luciene
Juliano Simões,
professora de estágio de docência em língua portuguesa do Instituto de Letras
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), membro da rede de
ancoragem da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.
Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da UFRGS.
Bruna
Sommer Farias,
professora de língua portuguesa e língua inglesa, mestranda na área no Programa
de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. Autora dos bilhetes orientadores que
figuram neste artigo – os bilhetes foram escritos quando Bruna fez seu estágio
curricular de português nos anos finais do Ensino Fundamental, sob a supervisão
de Luciene Juliano Simões.
■
Para pensar mais…
Foi
um grupo de pesquisadores da Unicamp quem chamou de catalisadores certos
gêneros presentes no campo do ensino-aprendizagem da linguagem. Você pode ler
sobre isso no livro Gêneros catalisadores: letramento & formação do
professor, organizado por Inês Signorini e publicado pela Parábola
Editorial.
Também
está disponível na internet o texto “O bilhete orientador: um gênero discursivo
em favor da avaliação de textos na aula de línguas”, na revista Cadernos
do IL, nº- 42, no endereço .