03/08/2016
10h29 - Atualizado em 03/08/2016 10h40
Bem-formada, nova geração chega mal-educada nas empresas, diz filósofo
Para Mario Sergio Cortella, que lança 'Por que
fazemos o que fazemos?', busca por propósito dos jovens é muitas vezes
'ilusória' e imediatista.
Ingrid FagundezDa BBC Brasil em São Paulo
Cortella lança o livro "Por que fazemos o que fazemos?" sobre
a busca de propósito no trabalho. (Foto: BBC)
Segunda-feira, seis da manhã. O despertador toca e
você não quer sair da cama. Está cansado? Ou não vê sentido no que faz?
Na introdução de seu novo livro, o filósofo e
escritor Mario Sergio Cortella coloca em poucas palavras o questionamento
central da obra, Por que fazemos o que fazemos?. Lançada em julho, ela trata da
busca por um propósito no trabalho, uma das maiores aflições contemporâneas.
Em entrevista à BBC Brasil, Cortella, também doutor
em educação e professor, fala como um mundo com muitas possibilidades levou as
pessoas a negar que sejam apenas mais uma peça na engrenagem. E explica como a
combinação de um cenário imediatista, anos de bonança e pais protetores fez com
que a "busca por propósito" dos jovens seja muitas vezes incompatível
com a realidade.
"No dia a dia, a pessoa se coloca como alguém
que vai ter um grande legado, mas fica imaginando o legado como algo
imediato", diz.
Essa visão "idílica", diz o filósofo,
torna escritórios e salas de aula em palcos de confronto de gerações.
"Parte da nova geração chega nas empresas
mal-educada. Ela não chega mal-escolarizada, chega mal-educada. Não tem noção
de hierarquia, de metas e prazos e acha que você é o pai dela."
Leia os principais trechos da entrevista abaixo:
BBC
Brasil - O que desencadeou a volta da busca pelo propósito?
Mario Sergio Cortella - A primeira coisa que desencadeou foi um tsunami tecnológico, que nos colocou tantas variáveis de convivência que a gente fica atordoado.
Mario Sergio Cortella - A primeira coisa que desencadeou foi um tsunami tecnológico, que nos colocou tantas variáveis de convivência que a gente fica atordoado.
A lógica para minha geração foi mais fácil. Qual
era a lógica? Crescer, estudar. Era escola, e dependendo da tua condição,
faculdade. Não era comunicação em artes do corpo. Era direito, engenharia,
tinha uma restrição.
Essa overdose de variáveis gerou dificuldade de
fazer escolhas. Isso produz angústia em relação a esse polo do propósito. Por
que faço o que estou fazendo? Faço por que me mandam ou por que desejo fazer?
Tem uma série de questões que não existiam num mundo menos complexo.
Não foi à toa que a filosofia veio com força nos
últimos vinte anos. Ela voltou porque grandes questões do tipo "para onde
eu vou?", "quem sou eu?", vieram à tona.
BBC
Brasil - Podemos dizer que nesse contexto vai ser cada vez menor o número de
pessoas que não tem esses questionamentos?
Mario Sergio Cortella - Cada vez menor será o número de pessoas que não se incomoda com isso. O próprio mundo digital traz o tempo todo, nas redes sociais, a pergunta: "por que faço o que faço?", "por que tomo essa posição?". E aquilo que os blogs e os youtubers estão fazendo é uma provocação: seja inteiro, autêntico. É a expressão "seja você mesmo", evite a vida de gado.
Mario Sergio Cortella - Cada vez menor será o número de pessoas que não se incomoda com isso. O próprio mundo digital traz o tempo todo, nas redes sociais, a pergunta: "por que faço o que faço?", "por que tomo essa posição?". E aquilo que os blogs e os youtubers estão fazendo é uma provocação: seja inteiro, autêntico. É a expressão "seja você mesmo", evite a vida de gado.
BBC
Brasil - No seu livro, você fala da importância do reconhecimento no trabalho.
Qual é ela?
Mario Sergio Cortella - O sentir-se reconhecido é sentir-se gostado. Esse reconhecimento é decisivo. A gente não pode imaginar que as pessoas se satisfaçam com a ideia de um sucesso avaliado pela conquista material. O reconhecimento faz com que você perca o anonimato em meio à vida em multidão.
Mario Sergio Cortella - O sentir-se reconhecido é sentir-se gostado. Esse reconhecimento é decisivo. A gente não pode imaginar que as pessoas se satisfaçam com a ideia de um sucesso avaliado pela conquista material. O reconhecimento faz com que você perca o anonimato em meio à vida em multidão.
No fundo, cada um de nós não deseja ser exclusivo,
único, mas não quer ser apenas um. Eu sou um que importa. E sou assim porque é
importante fazer o que faço e as pessoas gostam.
BBC
Brasil - Pelo que vemos nas redes sociais, os jovens estão trazendo essa
discussão de forma mais intensa. Você percebeu isso?
Mario Sergio Cortella - Há algum tempo tenho tido leitores cada vez mais jovens. Como me tornei meio pop, é comum estar andando num shopping e um grupo de adolescentes pedir para tirar foto.
Mario Sergio Cortella - Há algum tempo tenho tido leitores cada vez mais jovens. Como me tornei meio pop, é comum estar andando num shopping e um grupo de adolescentes pedir para tirar foto.
Uma parcela dessa nova geração tem uma perturbação
muito forte, em relação a não seguir uma rota. E não é uma recuperação do
movimento hippie, que era a recusa à massificação e à destruição, ao mundo
industrial.
Hoje é (a busca por) uma vida que não seja banal,
em que eu faça sentido. É o que muitos falam de 'deixar a minha marca na
trajetória'. Isso é pré-renascentista. Aquela ideia do herói, de você deixar a
sua marca, que antes, na idade média, era pelo combate.
O destaque agora é fazer bem a si e aos outros. Não
é uma lógica franciscana, o "vamos sofrer sem reclamar". É o
contrário. Não sofrer, se não for necessário.
Uma das coisas que coloco no livro é que não há
possibilidade de se conseguir algumas coisas sem esforço. Mas uma das frases
que mais ouço dos jovens, e que para mim é muito estranha, é: quero fazer o que
eu gosto.
BBC
Brasil - Esse é um pensamento comum entre os jovens quando se fala em carreira.
Mario Sergio Cortella - Muito comum, mas está equivocado. Para fazer o que se gosta é necessário fazer várias coisas das quais não se gosta. Faz parte do processo.
Mario Sergio Cortella - Muito comum, mas está equivocado. Para fazer o que se gosta é necessário fazer várias coisas das quais não se gosta. Faz parte do processo.
Adoro dar aulas, sou professor há 42 anos, mas
detesto corrigir provas. Não posso terceirizar a correção, porque a prova me
mostra como estou ensinando.
Não é nem a retomada do 'no pain, no gain' ('sem
dor, não há ganho'). Mas é a lógica de que não dá para ter essa visão
hedonista, idílica, do puro prazer. Isso é ilusório e gera sofrimento.
BBC
Brasil - O sofrimento seria o choque da visão idílica com o que o mundo
oferece?
Mario Sergio Cortella - A perturbação vem de um sonho que se distancia no cotidiano. No dia a dia, a pessoa se coloca como alguém que vai ter um grande legado, mas fica imaginando o legado como algo imediato.
Mario Sergio Cortella - A perturbação vem de um sonho que se distancia no cotidiano. No dia a dia, a pessoa se coloca como alguém que vai ter um grande legado, mas fica imaginando o legado como algo imediato.
Gosto de lembrar uma históra com o Arthur Moreira
Lima, o grande pianista. Ao terminar uma apresentação, um jovem chegou a ele e
disse 'adorei o concerto, daria a vida para tocar piano como você'. Ele
respondeu: 'eu dei'.
Há uma rarefação da ideia de esforço na nova
geração. E falo no geral, não só da classe média. Tivemos uma facilitação da
vida no país nos últimos 50 anos - nos tornamos muito mais ricos. Isso gerou
nas crianças e jovens uma percepção imediatizada da satisfação das
necessidades. Nas classes B e C têm menino de 20 anos que nunca lavou uma
louça.
BBC Brasil
- Quais as consequências dessa visão idealizada?
Mario Sergio Cortella - Uma parte da nova geração perde uma visão histórica desse processo. É tudo 'já, ao mesmo tempo'. De nada adianta numa segunda castigar uma criança de cinco anos dizendo: sábado você não vai ao cinema. A noção de tempo exige maturidade.
Mario Sergio Cortella - Uma parte da nova geração perde uma visão histórica desse processo. É tudo 'já, ao mesmo tempo'. De nada adianta numa segunda castigar uma criança de cinco anos dizendo: sábado você não vai ao cinema. A noção de tempo exige maturidade.
Vejo na convivência que essa geração tem uma visão
mais imediatista. Vou mochilar e daí chego, me hospedo, consigo, e uma parte
disso é possível pelo modo que a tecnologia favorece, mas não se sustenta por
muito tempo.
Quando alguns colocam para si um objetivo que está
muito abstrato, sofrem muito. Eu faço uma distinção sempre entre sonho e
delírio. O sonho é um desejo factível. O delírio é um desejo que não tem
factibilidade.
BBC
Brasil - Muitos deliram nas suas aspirações?
Mario Sergio Cortella - Uma parte das pessoas delira. Ela delira imaginando o que pode ser sem construir os passos para que isso seja possível. Por que no campo do empreendedorismo existe um nível de fracasso muito forte? Porque se colocou mais o delírio do que a ideia de um sonho.
Mario Sergio Cortella - Uma parte das pessoas delira. Ela delira imaginando o que pode ser sem construir os passos para que isso seja possível. Por que no campo do empreendedorismo existe um nível de fracasso muito forte? Porque se colocou mais o delírio do que a ideia de um sonho.
O sonho é aquilo que você constrói como um lugar
onde quer chegar e que exige etapas para chegar até lá, ferramentas, condições
estruturais. O delírio enfeitiça.
BBC
Brasil - Qual é o papel dos pais para que a busca pelo propósito dos jovens
seja mais realista?
Mario Sergio Cortella - Alguns pais e mães usam uma expressão que é "quero poupar meus filhos daquilo que eu passei". Sempre fico pensando: mas o que você passou? Você teve que lavar louça? Ou está falando de cortar lenha? Você está poupando ou está enfraquecendo? Há uma diferença. Quando você poupa alguém é de algo que não é necessário que ele faça.
Mario Sergio Cortella - Alguns pais e mães usam uma expressão que é "quero poupar meus filhos daquilo que eu passei". Sempre fico pensando: mas o que você passou? Você teve que lavar louça? Ou está falando de cortar lenha? Você está poupando ou está enfraquecendo? Há uma diferença. Quando você poupa alguém é de algo que não é necessário que ele faça.
Tem coisas que não são obrigatórias, mas são
necessárias. Parte das crianças hoje considera a tarefa escolar uma ofensa,
porque é um trabalho a ser feito. Ela se sente agredida que você passe uma
tarefa.
Parte das famílias quer poupar e, em vez de poupar,
enfraquecem. Estamos formando uma geração um pouco mais fraca, que pega menos
no serviço. Não estou usando a rabugice dos idosos, 'ah, porque no meu tempo'.
Não é isso, é meu temor de uma geração que, ao ser colocada nessa condição,
está sendo fragilizada.
BBC
Brasil - Sempre lemos e ouvimos relatos de conflitos de gerações entre chefes e
subordinados, alunos e professores. Como se explicam esses choques?
Mario Sergio Cortella - Criou-se um fosso pelo seguinte: uma criança ou jovem é criado por adultos, que são seus pais e mantêm com eles uma relação estranha de subordinação. A geração anterior sempre teve que cuidar da geração subsequente e essa vivia sob suas ordens.
Mario Sergio Cortella - Criou-se um fosso pelo seguinte: uma criança ou jovem é criado por adultos, que são seus pais e mantêm com eles uma relação estranha de subordinação. A geração anterior sempre teve que cuidar da geração subsequente e essa vivia sob suas ordens.
A atual geração de pais e mães que têm filhos na
faixa dos dez, doze anos, é extremamente subordinada. Como há por parte dos
pais uma ausência grande de convivência, no tempo de convivência eles querem
agradar. É a inversão da lógica.
Essa lógica faz com que, quando o jovem vai
conviver com um adulto que sobre ele terá uma tarefa de subordinação, na escola
ou trabalho, haja um choque. Parte da nova geração chega nas empresas
mal-educada. Ela não chega mal-escolarizada, chega mal-educada.
Não tem noção de hierarquia, de metas e prazos e
acha que você é o pai dela. Obviamente que ela também chega com uma condição
magnífica, que é percepção digital, um preparo maior em relação à tecnologia.
Fonte:http://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2016/08/bem-formada-nova-geracao-chega-mal-educada-nas-empres
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