Resenha do filme por Isabela Boscov (Alice 1)
Revistas » Edição 2161 / 21 de abril de 2010 .
Alice no País das Maravilhas parecia ser uma escolha lógica
para o diretor Tim Burton. Mas sua versão do clássico
do escritor Lewis Carroll é ao mesmo tempo feérica e tímida
NÃO MORA MAIS AQUI
Mia Wasikowska, no papel da Alice crescidinha: a atriz australiana seria uma ótima escolha para
Mia Wasikowska, no papel da Alice crescidinha: a atriz australiana seria uma ótima escolha para
a personagem – se esta houvesse sobrevivido
à revisão do diretor.
Aventuras de Alice no País das Maravilhas, o título com que o clássico infantil de Lewis Carroll ficou conhecido
desde sua primeira publicação em português, em 1865 (logo em seguida ao
lançamento da edição original inglesa), tem algo de enganoso. Uma tradução mais
exata – embora talvez menos convidativa – para Alice in Wonderland seria Alice na Terra dos
Assombros. Pois assombros, de fato, é só o que a pequena Alice encontra a partir
do momento em que cai na toca de um coelho branco (não é à toa que ele chama a
sua atenção; o coelho veste uma casaca) e, no fundo dela, se descobre em um
mundo cuja lógica, se é que ela existe, em nada se parece com a lógica deste
mundo. Como em um delírio de febre, Alice estica ao comer um biscoito, e então
encolhe ao provar uma beberagem. Depara com uma lagarta que fuma um narguilé e
com um gato cujo sorriso fixo continua pairando no ar mesmo depois que ele se
vai. Dá braçadas em uma lagoa feita de suas próprias lágrimas. Comemora seu
desaniversário e participa de um chá da tarde com um chapeleiro que, como bem
descreve seu nome, é maluco. E é convocada a testemunhar em um julgamento sobre
um roubo de tortas na corte da irascível Rainha de Copas, que tem cartas de
baralho no lugar de lacaios e cuja ordem mais frequente – aliás, a única que
ela sabe dar – é "cortem-lhe a cabeça!". Tudo muito curioso, mas não
propriamente maravilhoso: todos esses personagens tentam provocar, hostilizar
ou ridicularizar Alice – com sucesso. Ou seja, Alice não consegue ficar à
vontade nem no mundo que tem de habitar, nem no mundo criado por sua imaginação
(no desfecho, esclarece-se que tudo não passou de um sonho). Não surpreende,
assim, que essa seja uma das histórias prediletas de Tim Burton, o diretor de Edward Mãos de Tesoura, Ed Wood e A Fantástica
Fábrica de Chocolate: Burton construiu toda uma carreira sobre as dores e frustrações
causadas pelos sentimentos de inadequação – os de seus personagens e também os
seus. Surpreende, entretanto, que sendoAlice uma escolha tão, bem, lógica para o diretor, ele tenha demorado tanto
tempo para realizar sua adaptação. Tempo demais, na verdade.
Tudo em Alice no País das
Maravilhas (Alice in
Wonderland, Estados Unidos, 2010), que estreia no
país na próxima sexta-feira, tem aquele travo das ideias que foram analisadas,
racionalizadas e buriladas até que a última centelha de vida fosse apagada
delas. A imaginação visual de Burton, sua maior assinatura e melhor
recomendação, atinge aqui um pico febril. Cada cena é uma explosão de cores,
mas elas frequentemente adquirem tons biliosos. O 3D, formato para o qual o
filme foi convertido depois de ter sido rodado no 2D convencional, é usado de
maneira agressiva, quase vulgar. Nenhum personagem é poupado de fazer sua
aparição. Vários, porém, são apresentados e logo depois largados no meio do
caminho. Outros são adulterados sem que se identifique uma boa razão para tal:
a Rainha de Copas, por exemplo, mantém sua personalidade, mas é chamada aqui de
Rainha Vermelha, uma personagem bem diferente e que só existe em Através do Espelho, a sequência de País das Maravilhas publicada em 1871. O motivo parece
ser a necessidade de contrapô-la à meiga Rainha Branca, que no filme é sua irmã
e rival – Vermelha (Helena Bonham Carter) usurpou o trono de Branca (Anne
Hathaway), e Alice é quem vai ter de comandar as forças do bem em uma guerra
para derrubar a tirana e seus asseclas maléficos. Forças do bem? Guerra? A
certa altura, Alice no País das
Maravilhas, ícone da literatura vitoriana e
manifesto em favor do nonsense promulgado em uma era que se inebriara do
racionalismo, sai de vez do seu curso e vira uma fantasia medieval com
batalhas, espadas e armaduras. Vira, enfim, uma tentativa desanimada, sem alma
nem convicção, de emular sucessos da fantasia como O Senhor dos Anéis e Harry Potter e de, como neles, galvanizar o público em torno de um protagonista
incumbido de uma missão messiânica.
Se há dois sintomas claros de que esta Alice passou por um processo de
desnaturação, porém, eles estão, primeiro, na figura triste em que o
originalmente insolente Chapeleiro Maluco se transformou: quando Johnny Depp
está em cena, com lentes que deixam seus olhos repletos de melancolia do
tamanho de dois pires, o filme transpira o que de fato gostaria de ser – mais
uma história em que Depp assume o lugar de alter ego trágico do diretor, e em
que garotas perdidas em um labirinto de silogismos provavelmente não teriam
muito que fazer. O segundo e mais grave sintoma está na alteração ostensiva da
protagonista, de uma menina de 10 anos para uma jovem de 19, indignada com a
ideia de ter de se casar com um aristocrata tolo e sem queixo. Muito da
polêmica que a obra de Lewis Carroll acumulou no decorrer de sua trajetória vem
da paixão (até onde se sabe platônica, mas nem por isso menos imprópria) que o
escritor alimentou por sua musa, a menina Alice Liddell, que ele conheceu
quando ela tinha 4 anos (veja
o quadro abaixo). É compreensível e aceitável que Burton queira passar ao
largo de qualquer rastro deixado por essas sugestões de pedofilia. Mas, na
ânsia de se afastar delas, o diretor e a roteirista Linda Woolverton se jogam
em uma outra armadilha: transformam o enredo em uma história de superação e de
celebração do girl power – uma história, aliás, muito confusa.
Alice, agora uma protofeminista, se recusa a usar espartilho,
numa liberação de sua silhueta reminiscente das queimas de sutiãs dos anos 60.
Mas é também uma destilação dos mais tradicionais ideais de feminilidade: é
maternal, compassiva e redentora. Quando chega a essa última etapa, aliás,
adeus às formas exuberantes da australiana Mia Wasikowska, que terminam bem
comprimidas sob uma armadura de metal. Mia, conhecida pela série In Treatment, mostra ser uma atriz de bom senso
inato, capaz de fazer sempre a escolha mais sólida em cada situação em que é
lançada. É provável que fosse uma excelente Alice – se algo de Alice houvesse
restado nesta versão ao mesmo tempo tão feérica e tão tímida de Tim Burton.
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