Reler o Mundo: as fichas de cultura
O pessoal do círculo convocado e
então “a coisa”
começa.
Quando sente que dá, o animador coloca diante de todos o
primeiro cartaz das
fichas de cultura. Ele chama a atenção para o desenho, a
gravura.
Sugere que digam o que estão vendo: o que a figura mostra?
Quais são as partes,os elementos dela? O que será que ela quer dizer? Com o que
é que parece?
A discussão dele pode tomar todo o tempo da primeira reunião
do círculo. Pode continuar
no outro dia. Sobre esta
gravura:
“1ª situação — o homem no mundo e com o mundo. Natureza e
cultura.
“Através do debate desta situação, em que se discute o homem
como um ser de
relações, se chega à distinção entre os dois mundos — o da
natureza e o da cultura.
Percebe-se a posição normal do homem como um ser no mundo e
com o mundo”.
“Como um criador e recriador que, através do trabalho, vai
alterando a realidade.
Com perguntas simples, tais como: quem fez o poço? Por que o
fez? Como o fez?
Quando?, que se repetem com relação aos demais ‘elementos’
da situação, emergem
dois conceitos básicos: o de necessidade e o de trabalho e a
cultura se explicita num
primeiro nível, o de subsistência, O homem fez o poço porque
teve necessidade de água.
E o fez na medida em que, relacionando-se com o mundo, fez
dele objeto de seu
conhecimento. Submetendo-o, pelo trabalho, a um processo de
transformação. Assim,
fez a casa, sua roupa, seus instrumentos de trabalho. A
partir daí, se discute com o
grupo, em termos evidentemente simples, mas criticamente
objetivos, as relações entre
os homens, que não podem ser de dominação nem de
transformação, como as
anteriores, mas de sujeitos” (Educação como Prática da
Liberdade).
Nos primeiros tempos do método as outras situações eram as
seguintes:
2ª) o diálogo entre os homens mediatizado pela natureza;
3ª) o caçador iletrado, o índio;
4ª) o caçador letrado, a cultura letrada, diferenças de
culturas,
5ª) o caçador gato, cultura e natureza;
6ª) o homem transforma a matéria da natureza através do seu
trabalho, um jarro,
produto do trabalho do homem com a natureza, utilidade e
beleza, a arte;
uma poesia, a cultura espiritual; padrões de comportamento
dos homens;
8ª) uma poesia, a cultura espiritual;
9ª) padrões de comportamento dos homens e entre os homens;
10ª um círculo de cultura funcionando, síntese de todas as
discussões anteriores
É uma boa ideia transcrever também o que Paulo
Freire falou há
muitos anos a respeito desta última “situação existencial
provocadora”. Ela é um
exemplo de como se sugeria indicar o andamento das
discussões para se desenvolver
o pensamento sobre o homem e a
educação.
“10ª situação — círculo de cultura funcionando. Síntese das
discussões
anteriores.
“Esta situação apresenta um círculo de cultura funcionando.
Ao vê-Ia,
facilmente se identificam na representação. Debate-se a
cultura como aquisição
sistemática de conhecimentos e também a democratização da
cultura, dentro do quadro
geral da ‘democratização fundamental’, que caracteriza o
processo brasileiro.
“A ‘democratização da cultura’
. Além desses debates a
propósito da cultura e de sua
democratização, analisava-se o funcionamento de um círculo
de cultura, seu sentido
dinâmico, a força criadora do diálogo, o aclaramento das
consciências. Em duas noites
são discutidas estas situações, motivando-se intensamente os
homens para iniciar, na
terceira, a sua alfabetização, que é vista, agora, como uma
chave para abrir a eles a
comunicação escrita.
“Só assim a alfabetização cobra sentido. E a conseqüência de
uma reflexão que o
homem começa a fazer sobre sua própria capacidade de
refletir. Sobre sua posição no
mundo. Sobre o mundo mesmo. Sobre seu trabalho. Sobre seu
poder de transformar o
mundo. Sobre o encontro das consciências. Reflexão sobre a
própria alfabetização, que
deixa de ser assim algo externo ao homem, para ser dele
mesmo. Para sair de dentro de
si, em relação com o mundo, como uma criação.
“Só assim nos parece válido o trabalho da alfabetização, em
que a palavra seja
compreendida pelo homem na sua justa significação: como uma
força de transformação
do mundo. Só assim a alfabetização tem sentido. Na medida em
que o homem, embora
analfabeto, descobrindo a relatividade da ignorância e da
sabedoria, retira um dos
fundamentos para a sua manipulação pelas falsas elites. Só
assim a alfabetização tem
sentido. Na medida em que, implicando em todo este esforço
de reflexão do homem
sobre si mesmo e sobre o mundo em que e com que está, o faz
descobrir que o mundo é
seu também, que o seu trabalho não é a pena que paga por ser
homem, mas um modo...
de amar — e ajudar o mundo a ser melhor” (Educação como
Prática da Liberdade).
Estas são as finalidades das fichas de cultura, que sugerem
os debates a partir
das imagens das situações existenciais: levar o grupo de
educandos a rever criticamente
conceitos fundamentais para pensar-se e ao seu mundo;
motivá-lo para assumir, critica e
ativamente, o trabalho de alfabetizar-se.
O trabalho com as fichas de cultura introduz questões, inaugurava conceitos e
convida a ideias de um pensar que é, na verdade, o do próprio fundamento do método: de sua
filosofia e de sua
pedagogia.
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