Para o corpo, leite materno... e
a imaginação, como se alimenta?
No extraordinário livro de Italo
Calvino, "Seis propostas para o próximo milênio" , na conferência 2,
intitulada " Rapidez" , ele afirma: " Nos tempos cada vez mais
congestionados que nos esperam, a necessidade de literatura deverá focalizar-se
na máxima concentração da poesia e do pensamento. Borges e Bioy Casares
organizaram uma antologia de ‘Histórias breves e extraordinárias’. De minha parte,
gostaria de organizar uma coleção de histórias de uma só frase, ou de uma linha
apenas, se possível". Nessa mesma conferência, em outro momento, ele fala
da rapidez da narrativa oral da tradição popular que, segundo ele,
"negligencia os detalhes inúteis mas insiste nas repetições, por exemplo
quando a história apresenta uma série de obstáculos a superar. O prazer
infantil de ouvir histórias reside igualmente na espera dessas repetições:
situações, frases, fórmulas". Ao começar esta aula, confesso que me senti
num impasse: conto uma história de Letícia (e assumo o risco de você me achar
uma pedante, que adora contar histórias da neta) ou perco essas observações que
ilustram tão bem o interesse de uma criança com menos de três anos pelas
histórias e pela escrita? Perco essa atitude infantil que nos mostra já, tão
cedo, o " desejo de ler" anunciando-se, como em geral ocorre com os
que convivem com livros desde cedo? Enfrento o risco e conto a história.
Afinal, o livro é lindo e acho válida também a sugestão. Além do mais, sou dos
que acreditam que estudo, aliado à observação, produz conhecimento e quero
contagiar você com esse olhar que observa as crianças para aprender.
Salões,
bienais e feiras de livros são oportunidades ímpares de se descobrir bons livros,
uma vez que nessas ocasiões as editoras põem em destaque o que produziram de
melhor e mais recente. Sou fã de carteirinha! Assim, no Salão do Livro da
FNLIJ, onde todos os estandes são de literatura infantil (quem aprecia o gênero
não pode perder), encontrei um livro que, ao primeiro olhar, me pareceu muito
adequado a uma criança de quase três anos. Chama-se "Bruxa, Bruxa, venha a
minha festa". A autora é a norte-americana Arden Druce, que foi
bibliotecária e durante 21 anos professora; as ilustrações, bárbaras, para
dizer o mínimo, são de Pat Ludlow; foi publicado no Brasil pela Brinque-Book,
em tamanho grande, 23 X 29,5 cm. e o exemplar que tenho em mãos é da 16ª
reimpressão. Ao lado, eis a sua capa.
Na página inicial, ele traz a informação " Uma
história interativa" e orienta como se deve proceder. A criança diz a
primeira frase: " – Bruxa, bruxa, por favor, venha à minha festa." O
adulto fala a resposta da bruxa: " – Obrigada, irei sim, se você convidar
o gato." A história se constrói sobre essa estrutura de repetição, e nesse
jogo, a criança então convida: "Gato, gato, por favor, venha a minha
festa". E ele responde igualzinho à bruxa, " – Obrigado, irei sim, se
você convidar o espantalho." E assim vão sendo convidados para a festa a
coruja, a árvore, o duende, o dragão, o pirata, o tubarão, a cobra, o
unicórnio, o fantasma, o babuíno, o lobo – que exige a presença da Chapeuzinho
– esta, pede que se convide as crianças, e as crianças pedem que seja convidada
a bruxa. Como você vê, a história é circular, a brincadeira recomeça. E a
criança vibra ao perceber que tudo começa de novo. Ela se dá conta da
brincadeira e aprecia.
Li a
história uma primeira vez em voz alta, sugerindo a Letícia que ela fosse
falando comigo as falas dos convidados e, juntas, íamos passando as páginas,
explorando cada imagem e apreciando as belíssimas ilustrações. Contando assim,
como o texto se constrói, você não faz ideia de como o livro é belíssimo, de
como as ilustrações são fortes, impactantes e detalhadamente bem cuidadas.
Porque, não tenha dúvida: o encantamento da criança é decorrência da
sonoridade, do exotismo dos personagens, do aspecto lúdico da forma circular,
mas também da beleza das imagens. Na segunda leitura que fizemos, ela já sabia
dizer tanto a fala do convite, como a resposta do convidado. Repetimos a
brincadeira mais uma vez, alternando as falas. Ela andou folheando o livro
sozinha, depois disso, mas ninguém leu de novo com ela. Dois dias depois,
Letícia pegou o livro e falou sozinha, como se estivesse realmente lendo,
todas as falas do livro. Esperta, ela meio que virava a página, dava uma
olhadinha e, pela ilustração da página seguinte, ela sabia quem o atual
convidado ia querer que fosse também à festa, quem seria o próximo convidado. E
por incrível que pareça, mesmo depois que memoriza todas as falas, a
brincadeira não perde a graça: volta e meia ela volta ao livro e refaz toda a
suposta " leitura" . É um livro ideal para os que ainda não sabem
ler.
As
repetições, nas histórias para as crianças bem pequenas, têm um aspecto lúdico
e permitem que a criança aprecie a sonoridade e a musicalidade do texto. A
repetição é também um elemento facilitador, que auxilia a memória. Em minha
opinião, contar histórias é uma forma de se brincar com a criança – livros são
o mais inteligente dos brinquedos. A interação que a ocasião propicia é também
uma oportunidade para que o conhecimento da criança acerca do mundo se vá
ampliando, assim, você pode ir informando às crianças detalhes interessantes do
que está sendo visto. Nessa história, como a imagem do unicórnio (a do livro)
mostra, em primeiro plano, em um laranja vivo, seu chifre se destacando do pelo
branco, lembro-me que falei à Letícia o porquê do seu nome (" uni"
significa " um" , " córnio" tem a ver com "
corno" , que é o mesmo que " chifre" . Veja: este cavalinho se
chama unicórnio, porque tem um só chifre. Olhe como ele tem um chifre só, no
meio da testa). Penso que nenhum conhecimento é demais, se ele entra na vida da
criança de forma natural, sem nenhuma cobrança. Na primeira leitura nós
exploramos as imagens do livro, e acho que essa é uma boa oportunidade de se
observar e comentar tudo que parecer desconhecido para a criança. Afinal,
através das histórias – que nos dão o mote, a chance, a oportunidade – nessa
fértil e provocante interação com o adulto, a criança vai ampliando sua "
teoria de mundo" , para usar a expressão de Frank Smith. Essa é, em minha
opinião, uma das riquezas que a literatura nos oferece: como ela se apoia sobre
elementos do mundo real, ela nos ajuda a enxergar melhor as coisas, é como uma
lente que nos ajuda a ver mais longe, o que é particularmente enriquecedor para
aqueles que estão descobrindo tudo no mundo, sua forma, sua gente, suas coisas.
Assim como o escritor Italo Calvino, me acostumei a ver "na literatura uma
busca do conhecimento".
Mas a
literatura nos ensina nos interstícios do que oferece, sem compromisso com um
saldo pedagógico pré-estabelecido ou com um conteúdo específico. Sua função
primeira não é essa. Infelizmente, muitas pessoas ainda esperam e cobram das
histórias um ensinamento explícito, facilmente verificável numa prova. Há
poucos meses, em uma escola, ouvi uma avó reclamar de um livro de literatura
infantil indicado para a neta, de sete ou oito anos, com essas palavras:
"Livros de histórias... histórias ensinam o quê? É gastar dinheiro à
toa." Tal cobrança, em minha opinião, é uma rematada tolice, uma
lamentável ignorância acerca das potencialidades da literatura. Agora mesmo
tenho aqui, ao lado do computador, uma página do jornal O Globo, do dia
06/07/2010. Nela está o resultado do IDEB – Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica. A escola melhor classificada, no Estado do Rio, fica em um
bairro pobre, não tem quadra, nem auditório, mas nela os alunos contam com
livros e bons professores que os estimulam a ler. Ali os alunos têm a liberdade
de escolher o que ler e o compromisso de pegar livros na biblioteca para lerem
em casa; eles têm o direito à literatura e o dever de explorá-la.
Corretíssimo! Louvável! Assim o sucesso chega! Nas páginas coloridas, ou
melhor, nas diáfanas asas da literatura. Esse resultado não é surpresa: já
vimos um CIEP de Trajano de Morais, ao ser o melhor classificado, justificar o
sucesso informando que seus alunos leem, que o colégio valoriza a leitura. Em
outra ocasião, não sei se nessa ou em outra avaliação, a melhor escola – do
Piauí – também informou que a chave do seu sucesso é o estímulo e a valorização
da leitura. Ano após ano vemos a mesma coisa: é a leitura que move os índices
para melhor. E é bom lembrar que, nessa atual avaliação, o Estado do Rio ocupou
o penúltimo lugar no ranking. À frente apenas do Piauí. Os estados brasileiros
que contam com melhores resultados são também aqueles onde a leitura está mais
presente, tanto nas escolas como nas famílias; os índices de leitura da
população em geral confirmam isso. Sempre ela, a leitura! Por isso, em outro
texto, já escrevi: "Ler é o que de melhor se pode fazer em uma sala de
aula." E, ano após ano, vemos ainda muitos responsáveis pela educação
falando em refazer o currículo, em mexer nos conteúdos, em atualizar as grades
de conhecimento, em estudar as formas de avaliação, como se essas fossem as
causas do fracasso escolar das crianças brasileiras. É quase para se perguntar:
não estão mesmo enxergando o problema ou o objetivo é que tudo continue igual,
sem tirar nem pôr, sem melhorar nada?
Última
atualização: quarta, 20 abril 2011, 13:20 - Cecierj
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