A força das primeiras histórias e
como as narrativas atravessam a nossa vida
"As histórias – de ‘Runplestiltskin’ a ‘Guerra
e paz’ – são uma das ferramentas básicas criadas pela mente humana para
facilitar o entendimento. Já tivemos grandes sociedades que nunca usaram a
roda, mas nunca existiu uma sociedade que não contasse histórias."
Assim afirma a escritora Úrsula Le Guin1,
e se você se dedicar a uma pesquisa sobre a importância e a vitalidade das
histórias, dos contos de fada e dos contos populares, de modo geral, certamente
encontrará inúmeras afirmações semelhantes em textos de escritores, psicólogos
e estudiosos do assunto. Não conheço adulto que não carregue, com especial
carinho, as próprias histórias. E como as pessoas se deliciam em revivê-las, a
cada vez que é possível contá-las! As histórias da infância vão constituindo o
terreno sobre o qual se plantam as conquistas da vida adulta. O escritor José
Saramago expressou isso lindamente: Primeiro, ao afirmar "Tentei não
fazer nada na vida que envergonhasse a criança que fui." E depois, ao
garantir a presença da criança durante toda a vida: "Quando me for
deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei, de mão dada, com essa criança que
fui." As histórias da infância vão dando vida e cor às memórias que
permanecem e alimentam os anos da velhice. Celso Gutfreind, médico psiquiatra e
escritor, nos ensina: "o potencial terapêutico de contar histórias é
hoje incontestável. É mesmo possível afirmar que as histórias representaram,
sempre e de forma empírica, uma importante contribuição para a estrutura da
vida emocional de crianças e adultos."
"É
mesmo possível afirmar que as histórias representaram, sempre e de forma
empírica, uma importante contribuição para a estrutura da vida emocional de
crianças e adultos."
Não conheço criança que não goste de histórias. E
convivendo em um meio em que as histórias circulam, antes mesmo dos três anos
de idade, a criança começa também a fabular, a contar, a estruturar o seu
texto/fala em forma de narrativa. Comecei a contar histórias para Letícia
quando ela ainda não tinha completado um ano de vida. Contei, duvidando que ela
estivesse entendendo as peripécias do enredo, a astúcia do lobo, a
desobediência de Chapeuzinho, mas ao terminar, como o seu vocabulário era ainda
bem restrito, ela manifestou sua reação com uma única palavra: "Mais!".
Alguns dias depois, a reação não era menos entusiástica, mas a expressão já
se fazia mais consistente: "Mais histólia, vovó!" Hoje, com
dois anos e dez meses, com um vocabulário que lhe permite contar todas as
novidades do dia, além de relacioná-las com episódios anteriores, quando volta
da escola é ela quem assume o papel de narradora. E, se alguma dúvida possa
existir, quanto ao gênero de seu discurso, saiba que volta e meia ela intercala
entre os fatos a expressão "E sabe o que aconteceu?" – recurso
naturalmente usado, ao se contar uma história, para aguçar a curiosidade e
garantir a atenção do ouvinte. Suas narrativas dão conta e vão dando forma ao
enredo de seu dia-a-dia escolar. Assim, ela se torna sujeito de sua fala,
assume sua posição no diálogo do mundo e amplia seu vocabulário. Hoje mesmo
saiu-se com esta, dirigida a um adulto: "Você é incrível!"
Se a nossa vida é feita de histórias, penso que
aquelas que frequentam os primeiros anos de nossas vidas – mais ainda que as
dos anos seguintes – são as que mais fortemente se imprimem em nossas memórias.
Talvez por conta da extraordinária plasticidade do cérebro infantil, talvez por
conta da curiosidade voraz daqueles primeiros anos, não são poucos os
escritores que creditam parte de seu sucesso na literatura, às histórias
ouvidas quando crianças. Gabriel Garcia Márquez, numa entrevista a Luis Harss e
Barbara Dohmann, rememora a avó: "Era uma grande contadora de
histórias." E como até a idade de oito anos foi educado pelos avós, sobre
este período ele conta: "Tinham uma casa enorme, repleta de fantasmas.
Eram pessoas muito supersticiosas e impressionáveis. Em cada canto havia
esqueletos e memórias, e depois das seis da tarde ninguém se atrevia a sair do
quarto. Citado por Salman Rushdie em Pátrias Imaginárias. Portugal:
Publicações Dom Quixote, 1994.Era um mundo de terrores fantásticos2."
O mundo excêntrico e formidável de "Cem anos de solidão", de "O
amor nos tempos do cólera", do delicioso e imperdível "Do amor
e outros demônios" e de outros romances de Garcia Márquez tem ali, nas
narrativas e cenários exóticos da infância, a sua origem fundadora. É um
escritor que vale a pena visitar, ou seja, ler!
Moacyr Scliar, escritor gaúcho, em vários textos
seus refere-se às histórias familiares, lembrança sempre presente em sua vida.
Aqui mesmo, numa das aulas, já vimos um comentário seu sobre as histórias e os
livros em sua infância. Mas no livro "Porto de histórias – Mistérios e
crepúsculo de Porto Alegre", da Record, ao falar do bairro do Bom Fim,
aparecem também as histórias daqueles que ali viviam, e o escritor expressa sua
gratidão àqueles amigos e vizinhos que, contando, alimentaram a imaginação do
menino que iria construir o escritor: "Quando falo do Bom Fim estou
falando de minha infância. (...) O Bom Fim dos anos quarenta era diferente; era
uma aldeia da Europa Oriental absurdamente, fantasticamente, transplantada para
Porto Alegre. (...) À noite – numa época em que ainda não existia tevê e em que
a diversão era cara – reuniam-se na casa de um ou de outro e ficavam jogando
cartas ou contando histórias. Ah, que grandes contadores de histórias eles
eram! Não tenho dúvida alguma de que minha carreira de escritor começou ali,
ouvindo as histórias que narravam com tanto prazer e que falavam de seu sonho
brasileiro."
A escritora Nélida Piñon, em seu livro de memórias
"Coração andarilho", da Record, também presta sua homenagem àqueles
que a proveram de histórias, na infância. Descendente de uma família que, pelo
lado materno e paterno, saíra da Espanha "para deitar raízes no solo
brasileiro", ela reconhece que "os tios, os avós e os pais tinham
histórias para contar". E quando, menina ainda, foi cumprir a promessa de
conhecer a Galícia, terra dos avós, com a curiosidade e a avidez das crianças,
fareja onde moram as narrativas: "Era comum sentar-me no final da tarde ao
lado dos velhos à beira da morte, cobrando-lhes histórias que podiam ser de um
bisavô, vizinho, bandoleiro, do repertório da guerra civil. Exigia deles lendas
imortais, que eu transportasse comigo ao voltar ao Brasil. Cada velho
adicionando às narrativas as próprias versões dos fatos, já que assim se
reproduziam as histórias oriundas da boca faminta e maliciosa dos grandes
rapsodos populares. E, enquanto eles davam início a uma narrativa sem tempo
certo para encerrar-se, fui aprendendo que só saberia narrá-las no futuro, e
com relativa fidelidade, se me convertesse na escritora que, a pretexto de
falar de mim, estivesse, de verdade, falando da coletividade, que é a única
narrativa que merece subsistir."
Marina Colasanti, num dos ensaios de "Fragatas
para terras distantes" também da Record, ao comentar o poder das
narrativas para os seres humanos que, segundo ela, "precisam
narrar", cita uma passagem de François Sonkim, referindo-se às
histórias da infância: "Para compensar a ausência da minha mãe, meu pai me
paternalizava/maternalizava. Não podendo me dar seu leite, ele me deu
histórias, me deu o sonho, a arte de sonhar." E Marina comenta:
"Aí está, nas palavras do ginecologista francês François Sonkim, autor de
‘L’amour du père’, o poder da narrativa como alimento primeiro."
Como você vê, não é por simples acaso que, nas
sociedades primitivas, os homens se reunissem ao pé de fogueiras acesas para
contar os acontecimentos do dia, as lendas e mitos que passavam de pais a
filhos. Este parece ser mesmo um atributo do ser humano: somos perpassados por
histórias. Elas são o modo como compreendemos a vida e aos outros, além de
serem um excelente dínamo para a nossa memória. O cientista cognitivo Mark
Johnson esclarece: "A imaginação narrativa – a forma conhecida como
história – é a ferramenta básica do pensamento. As faculdades racionais
dependem dela. É nosso principal meio de perscrutar o futuro, de prever,
planejar e explicar as coisas... A maior parte daquilo que vivemos, do nosso
conhecimento acumulado e da nossa atividade mental encontra-se organizada sob a
forma de histórias3."
1A
escritora norte-americana Úrsula Le Guin refere-se a Runplestiltskin,
personagem de um conto popular alemão, recolhido pelos irmãos Grimm. Guerra
e paz, de Leon Tolstoi, é considerado um dos maiores romances da
literatura, com centenas de personagens e mais de mil páginas na versão
original.
2Citado
por Salman Rushdie em Pátrias Imaginárias. Portugal: Publicações Dom Quixote,
1994.
3Citado em
Daniel H. Pink, O cérebro do futuro. Trad. Alexandre Feitosa. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2007, p. 98.
Última
atualização: segunda, 18 abril 2011, 17:54
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