É lendo que se aprende a ler... e a literatura infantil é a mestra das mestras
"O conto
estava em trajes domingueiros: o lenhador, a mulher do lenhador, a sua filha, a
fada, todos estes personagens, nossas criaturas conhecidas, adquiriram
majestade; seus trajes foram magnificamente descritos, as palavras deixavam
suas marcas nos objetos, transformando ações em rituais e eventos em
cerimônias."1 Assim Sartre
descreve suas impressões ao ouvir pela primeira vez uma história lida. Numa
comparação muito apropriada – como se a linguagem falada, do dia-a-dia,
aparecesse no texto em "roupas melhores, reservadas para as saídas de domingo",
"trajes domingueiros" – ele salienta o aspecto estético da literatura
escrita, sua superioridade em relação à linguagem descuidada e menos
sofisticada da linguagem oral. E aqui entramos numa questão importante, de que
muito se fala nos dias atuais: a chamada "contação de histórias".
Justamente porque uma infância sem histórias é o que há de mais pobre, não se
pode deixar de ver com entusiasmo os muitos movimentos e projetos existentes
hoje, que revivem as práticas de se contar histórias para as crianças. Melhor
isso, que nada. Mas pode-se fazer mais.
E por isso, eu
gostaria que você soubesse que – mesmo nessa questão – há duas vertentes: de um
lado, há aqueles que acham que se trata simplesmente de teatralizar a história
e adaptam o texto à sua linguagem: contam com suas próprias palavras, em geral
"barateando" o texto, facilitando, usando palavras que acreditam
serem mais próximas do universo infantil, simplificando o vocabulário e
simplificando também a estrutura sintática. E há aqueles que teatralizam a
história, usando os mesmos recursos que encantam a criança, mas – como um bom e
verdadeiro ator – memorizam o texto tal como ele foi escrito, mantêm as mesmas
palavras da escrita – aquelas que dão a impressão de estarem "em
trajes domingueiros", como tão bem descreveu Sartre – reproduzem
fielmente as mesmas estruturas sintáticas. Não resta nenhuma dúvida de que
estes oferecem às crianças uma oportunidade ímpar de convívio com a língua
escrita; oferecem, aos que ainda não sabem ler, um contato enriquecedor com as
estruturas sintáticas da escrita, que vai fazer diferença em seu cérebro. Se
podemos fazer isso, por que perder essa oportunidade? Se é mesmo inegável a
elegância, a riqueza e a superioridade da escrita, em relação à linguagem oral,
por que priorizar a fala? Lembre-se que vivemos em um mundo dominado pela
escrita e a nostalgia de um passado remoto não vai nos ajudar em nada. Muito
menos vai ajudar aqueles que estão nascendo agora. Para desenvolver a
oralidade, melhor será uma situação de diálogo, em que a criança seja desafiada
a falar, a expor seus próprios pensamentos, traduzindo-os na expressão oral. E
para isso é importante um vocabulário rico. Histórias escritas devem ser
contadas tal como foram registradas. Preocupo-me em detalhar esse assunto,
porque gostaria de convencer você com argumentos que considero irrefutáveis.
Não se trata
de simples opinião, ponto de
vista distinto. Trata-se de pesquisas e pesquisas sobre a aquisição da
linguagem, sobre o domínio da escrita/leitura; confirmação científica acerca do
desenvolvimento cognitivo da criança. São estudos muito sérios.
Vimos, na aula
anterior, alguns testemunhos acerca de como as histórias são providenciais na
formação da estrutura emocional de crianças e adultos e como a fantasia tem papel
importante na vida do ser humano: simbolicamente somos confrontados com nossos
medos e dificuldades mais '1íntimos; exercitamos nossa relação com o outro e
vivenciamos a precariedade inerente ao ser humano; enfrentamos, na ficção, o
inexorável, os riscos, as perdas, a morte e as histórias nos ensinam que a vida
continua. Isso nos fortalece para enfrentar o real. Reconhecemos a limitação
que é comum a todos, que faz parte de nossa condição humana. Aprendemos a
exercitar um pensamento dialético: as coisas são assim, mas podem ser
diferentes. Neste sentido, histórias populares ou da literatura infantil
contemporânea enriquecem o mundo interior das crianças, assim como a leitura da
literatura, a leitura de ficção – romances e contos – enriquece o mundo interior
dos adultos. Mas, para as crianças, o contato com as histórias – tal como foram
registradas e publicadas em livros – é mais, muito mais que somente isso. (Não
tenho dúvidas de que o mesmo vale para os adultos.)
Vamos falar agora
do extraordinário processo de aquisição da língua materna por uma criança: em
geral, as pessoas convivem com o bebê todos os dias e não se dão conta do
fabuloso processo vivenciado pela criança – entre o nascimento e os três anos
de idade ou pouco mais – em que ela, paulatinamente, vai se assenhoreando da
língua materna de forma quase perfeita, dominando um vocabulário extenso e
formas sintáticas complexas, usando corretamente tempos e pessoas verbais,
concordâncias verbais e nominais e isso tudo sem nenhuma aula programada, tudo
acontecendo da forma mais natural possível. É absolutamente extraordinário! E
para que esse processo se dê em toda sua pujança, para que este enorme
progresso seja atingido pela criança sem dificuldade, a leitura de histórias,
para ela, tem primordial importância. Não é apenas conhecer a história de
Chapeuzinho Vermelho, é ouvir a história registrada "em
trajes domingueiros", repito. É entrar em contato com um padrão
léxico de nível superior, com estruturas sintáticas diferentes, é aprender
novas palavras, nova linguagem.
Veja como Maryanne
Wolf – que você já conhece – refere-se ao papel dos livros e da leitura de
histórias, nos primeiros anos de vida: "A pura falta de acesso aos
livros terá um efeito demolidor sobre a bagagem lexical e o conhecimento de
mundo que uma criança deveria adquirir em seus primeiros anos."2 Ela se refere a uma pesquisa realizada em Los
Angeles e aponta seu resultado: nas comunidades mais pobres não se encontrou
nenhum livro infantil em casa; no grupo médio havia em torno de 3 livros
somente; enquanto isso, no grupo mais favorecido, as crianças tinham acesso a
inúmeras histórias contidas em mais ou menos 200 livros diferentes. Outra
pesquisa, realizada na Califórnia, mostrou uma realidade que, segundo ela, gera
graves consequências: que "aos cinco anos de idade, algumas crianças
provenientes de meios linguisticamente pobres terão ouvido 32 milhões de
palavras a menos, dirigidas a elas,
que uma criança de
classe média."3 Veja que essa é a
conclusão que leva os pesquisadores a recomendar a conversa com as crianças,
desde os primeiros meses de vida. E a reconhecer o quanto é benéfica a leitura
das histórias, uma vez que, na língua escrita, o número de palavras
usadas em geral é maior, os detalhes são salientados e a diversidade vocabular
é mais rica.
Só para você ter uma ideia, o item de onde extraí as duas
citações do livro de Maryanne, recebeu dela o seguinte título: "A guerra contra a pobreza léxica".
Ela afirma que as crianças provenientes de um meio linguisticamente pobre, já entram
na educação infantil e nas classes de alfabetização em desvantagem e assim ela
argumenta: "Não se trata simplesmente de uma questão
do número de palavras que não se ouviu ou não se aprendeu. Se não se ouvem as
palavras, não se aprendem os conceitos. Quando não estamos familiarizados com
as formas sintáticas, sabemos menos da relação entre os acontecimentos em uma
história. Uma pessoa que desconhece as formas narrativas tem menos capacidade
para deduzir e fazer previsões. Se a tradição cultural e os sentimentos das
outras pessoas nunca foram experimentados, compreender os sentimentos dos que
nos rodeiam é mais difícil."4
Como você vê, tudo isso nos atinge diretamente: somos herdeiros de um país que
ainda não conseguiu alfabetizar integralmente sua população; muitas crianças
começam a patinar, sem sair do lugar, ainda na classe de alfabetização; temos
um grande contingente de analfabetos funcionais e de pessoas sem acesso aos
livros; e a leitura – vimos nas primeiras aulas – é tida como opção de lazer por
pequeníssima parcela de brasileiros.
1Esta citação encontra-se em Rego, Lúcia Lins Browne. Literatura
infantil: Uma nova perspectiva da alfabetização na pré-escola. São Paulo:
FTD, 1988, p. 51. 2Wolf, Maryanne. Cómo aprendemos a leer – Historia y ciencia del cerebro y la lectura. Barcelona: Ediciones B, 2008, p. 127 ( tradução nossa do espanhol).
3Idem, p. 126
4Id., p. 126. "Se a tradição cultural e os sentimentos das outras pessoas nunca foram experimentados..." Através das histórias, em situações fictícias, aprendemos sobre os sentimentos dos outros.