A equação mais difícil
Mariana
Cruz
Aquela história que nossos pais e avós cismam de
repetir, de que “no meu tempo era diferente”, às vezes soa como puro
saudosismo; outras vezes, serve para mostrar a mudança de costumes e valores de
quando eram jovens para os dias de hoje. Muitos aproveitam para alfinetar:
“como as coisas pioraram”.
Meu pai, quando lembra seus tempos de escola, foge
um pouco da regra. Ele suprime parcialmente a memória afetiva e fala de certos
absurdos vividos naquela época. Algumas passagens que hoje em dia seriam caso
de polícia e que outrora eram vistas com naturalidade. Como o caso de um colega
seu negro, e um dos mais baderneiros da turma. Quando ele exagerava na bagunça,
a diretora, sem a menor cerimônia, passava-lhe um duro carão e o chamava de
“negrinho”. Não bastasse isso, por vezes complementava a reprimenda dando, pasme
cascudos na cabeça do arteiro. Ele, porém, não se sentia nada humilhado com tal
agressão (afinal, naqueles tempos, tabefes nos infantes, sobretudo nos atentados,
eram considerados corretivos eficazes): assim que a diretora se retirava do
recinto, ele começava a praguejar, furioso: “tomara que um avião passe e jogue
uma bomba nessa escola”. Era o tempo da Segunda Guerra.
Se a escola de outrora traz essas lastimáveis
lembranças – assim como a palmatória, em tempos ainda mais remotos –, tinha
também o lado bom: a alta qualidade do ensino e o respeito com que o professor
era tratado pelos alunos e pela sociedade. Fico impressionada como meu pai
lembra, ainda hoje, de diversos conteúdos aprendidos: de fórmulas matemáticas a
acontecimentos históricos, passando por elementos da sintaxe da nossa língua e
declinações latinas. Outra coisa que me chama a atenção sobre o alto nível da
educação de antes se deve ao fato de meu pai ter sido um rapaz proveniente de
família pobre, estudante de uma escola pública – que não era do nível de um
Colégio Pedro II, e sim uma simples escola do subúrbio – e, mesmo trabalhando
(como não tinha dinheiro, teve que trabalhar quando terminou o Ensino Médio),
conseguiu passar no vestibular de Medicina para a então Faculdade Nacional de
Medicina. Claro, não tiro o mérito do meu velho, que ainda hoje é muito
estudioso e inteligente, mas ele mesmo divide a responsabilidade de seu êxito
com a boa base que sua escola lhe deu.
Hoje em dia, vendo meus alunos e ouvindo o relato
de meus colegas de trabalho, penso que, se não fossem as cotas para os
estudantes de escola pública (não me refiro à meia dúzia de escolas públicas top
de linha como o Pedro II, os colégios de Aplicação e as escolas técnicas, que
estão entre as mais bem colocadas do Enem), muitos deles encontrariam sérias
dificuldades para passar para uma universidade pública de medicina. Não penso
que isso seja por incompetência deles – alguns, inclusive, são bastante
inteligentes –, mas pelas lacunas deixadas pela educação que tiveram. Há uns
dois ou três anos, por exemplo, dei aula para uma turma que ficou o ano inteiro
sem aula de Química e meio ano sem aula de Biologia. Assim, por mais inteligentes
que alguns possam ser, fica difícil passar em um vestibular concorrido, que
tenha um grau de exigência maior em tais disciplinas.
Nestes anos de magistério presenciei muita coisa:
carência de professores, salas sem porta e com as paredes riscadas, cadeiras
quebradas, professores faltosos, alunos desinteressados com seus fones de
ouvido com volume nas alturas, lousas pichadas, professor ofendendo aluno,
aluno ofendendo professor, entre outros absurdos. Alega-se que, com a aprovação
automática, muitos alunos não se esforçam nos estudos, pois sabem que vão
passar de ano anyway; por outro lado, se não fosse esse sistema, muitos
desistiriam na primeira repetência. Como resolver tal teorema? Dou aula para o
Ensino Médio e, apesar de não ser professora de Português, não posso deixar de
corrigir quando um aluno me entrega um texto com grafias como “derrepente”,
“porisso”, “quiz”, “oque” Com falhas desse nível, fica difícil tirar uma nota
realmente boa numa redação de vestibular.
No tempo do meu pai, as escolas não tinham
ar-condicionado, nem sala de vídeo, nem computador. Acho bom que tenha tudo
isso, mas é mais fundamental que as escolas tenham professores e que eles sejam
mais valorizados. Antes, o professor era reverenciado: todos os alunos se
levantavam quando ele adentrava a sala de aula e só se sentavam quando ele
mandava. Os professores iam de terno e gravata e as mulheres de salto alto,
vestiam-se como os executivos atuais. O professor não precisava implorar por
silêncio, pedir repetidamente para o para o aluno sentar, tirar o boné. Por
outro lado, eu, como professora, tento ter uma relação tranquila com os
estudantes e entendo que os jovens de hoje são mais contestadores – o que é
bom, não é como as ovelhinhas reprimidas de outrora. E faz parte desta fase da
vida testar os próprios limites e o dos outros; além disso, muitos têm
necessidade de se autoafirmar. Nesse afã de ser aceito, por vezes ultrapassam
os limites: confunde liberdade com zoeira, amizade com intimidade –
exageros de que nem mesmo os adultos estão livres. Difícil saber definir essa
linha.
Se antes o salário de um professor era alto o
suficiente para que ele não fosse obrigado a trabalhar em cinco escolas e, com
isso, tivesse mais tempo para preparar aulas, pedir trabalhos mais elaborados e
estudar, talvez muitos alunos de escolas públicas pudesse disputar em condições
de igualdade o ingresso numa faculdade concorrida.
Escuto muitos professores dizendo que os alunos
“não sabem nada”, sobretudo os docentes da área de exatas, cuja matéria é toda
encadeada e necessita de uma base sólida para aprender os novos conteúdos. Vejo
que essa falta de fundamento faz com que muitos alunos terminem o terceiro ano
do Ensino Médio sem saber fazer sequer uma equação de segundo grau nem
diferenciar advérbio de adjetivo. Da parte dos estudantes, escuto reclamações
de que alguns professores não ensinam direito, faltam, chegam atrasados.
Afinal, de quem é a culpa: dos jovens que colocam os pés em cima da mesa ou dos
salários abaixo da média?
Tal descaso com a educação faz com que uma coisa
puxe a outra: muitas vezes escutei alunos, reclamarem, principalmente nos
últimos tempos de sexta-feira: “pô, professora, você não falta, que saco!”. É a
cultura do “sair mais cedo”; mas foram eles que inventaram isso? Ou foram se
adaptando à carência constante de professores? O jogo é tão confuso que
professores e alunos, ora apontados como vilões são na realidade verdadeiros
heróis: o que dizer do professor que dá aula em diversas escolas prepara as
aulas com esmero, estuda, fica até de madrugada corrigindo trabalhos e
preparando apostilas? E do aluno que acorda às cinco da manhã, pega o ônibus
cheio – que muitas vezes nem para no ponto –, às sete da manhã já está dentro
de sala mesmo cansado (muitos trabalham na parte da tarde), mas não deixam de
ir, dia após dia, mesmo que tenham um ou dois tempos de aula?
Na situação em que a escola pública se encontra
como resolver a equação?
Publicado em 14 de agosto de 2012
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