O recalcitrante
Carlos Drummond de Andrade
O trocador olhou, viu, não aprovou. Daquele passageiro, escanchado placidamente no banco lateral, escorria um fio de água que ia compondo, no piso do ônibus, a microfigura de uma piscina.
– Ei, moço, quer fazer o favor de levantar?
O moço (pois ostentava barba e cabeleira amazônica, sinais indiscutíveis de mocidade),nem-te-ligo.
O trocador esfregou as mãos no rosto, em gesto de enfado e desânimo, diante de situação tantas vezes enfrentada, e murmurou:
– Estes caras são de morte.
Devia estar pensando: Todo ano a mesma coisa. Chegando o verão, chegam os problemas. Bem disse o Dario, quando fazia gol no Atlético: Problemática demais. Estava cansado de advertir passageiros que não aprendem como viajar em coletivo. Não aprendem e não querem aprender. Tendo comprado passagem por 65 centavos, acham que compraram o ônibus e podem fazer dele casa-da-peste. Mas insistiu:
– Moço! Ô moço!
Nada. Dormia? Olhos abertos, pernas cabeludas ocupando cada vez mais espaço, ouviam e não respondia. Era preciso tomar providência:
– O senhor aí, cavalheiro, quer cutucar o braço do distinto, pra ele me prestar atenção?
O cavalheiro, vê lá se ia se meter numa dessas. Ignorou olímpico, a marcha do caso terrestre.
Embora sem surpresa, o cobrador coçou a cabeça. Sabia de experiência própria que passageiro nenhum quer entrar numa fria. Ficam de camarote, espiando o circo pegar fogo. Teve pois que sair de seu trono, pobre trono de trocador, fazendo a difícil ginástica de sempre.Bateu no ombro do rapaz:
- Vamos levantar?
O outro mal olhou para ele, do longe de sua distância espiritual. Insistiu:
– Como é, não levanta?
– Estou bem aqui.
– Eu sei, mas é preciso levantar.
– Levantar pra quê?
– Pra quê, não. Por quê. Seu calção está molhado de água do mar.
– Tem certeza que é água do mar?
– Tá na cara.
– Como tá na cara? Analisou?
Forrou-se de paciência para responder:
– Olha, o senhor está de calção de banho, o senhor veio da praia, que água pode ser essa que está pingando se não for água do mar? Só se...
– Se o quê?
– Nada.
– Vamos, diz o que pensou.
– Não pensei nada. Digo que o senhor tem que levantar porque seu calção está ensopado e vai fazendo uma lagoa aí embaixo.
– E daí?
– Daí, que é proibido.
– Proibido suar?
– Claro que não.
– Pois eu estou suando, sabe? Não posso suar sentado, com esse calorão de janeiro? Tenho que suar de pé?
– Nunca vi suar tanto na minha vida. Desculpe, mas a portaria não permite.
– Que portaria?
– Aquela pregada ali, não está vendo? “O passageiro, ainda que com roupa sobre as vestes de banho molhadas, somente poderá viajar de pé.”
– Portaria nenhuma diz que passageiro suado tem que viajar de pé. Papo findo, tá bom?
– O senhor está desrespeitando a portaria e eu tenho que convidar o senhor a descer do ônibus.
– Eu, descer porque estou suado? Sem essa.
– O ônibus vai parar e eu chamo a polícia.
– A polícia vai me prender porque estou suando?
– Vai botar o senhor pra fora porque é um... recalcitrante.
O passageiro pulou, transfigurado:
– O quê? Repita, se for capaz.
– Re... calcitrante.
– Te quebro a cara, ouviu? Não admito que ninguém me insulte!
– Eu? Não insultei.
– Insultou, sim. Me chamou de réu. Réu não sei o quê, calcitrante, sei lá o que é isso. Retira a expressão, ou lá vai bolacha.
– Mas é a portaria! A portaria é que diz que o recalcitrante... – Não tenho nada com a portaria. Tenho é com você, seu cretino. Retira já a expressão,ou...
Retira não retira, o ônibus chegou ao meu destino, e eu paro infalivelmente no meu destino. Fiquei sem saber que consequências físicas e outras teve o emprego da palavra “recalcitrante”.
Entendendo o texto
1-O que o trocador viu, olhou e não aprovou?
a) Um fio de água no piso do ônibus;
b) Um passageiro com o calção molhado;
c) A microfigura de uma piscina.
2- Qual foi a primeira atitude do trocador?
3- Por que o autor concluiu que o passageiro era moço?
a) O passageiro tinha cabelos e barba compridos.
b) O passageiro fora à praia;
c) o trocador chamara o passageiro de “moço”.
4- “Chegando o verão, chegam problemas”, por quê?
a) Faz muito calor:
b) muitos passsageiros, ao voltarem das praias,viajam com roupas molhadas;
c) os passageiros viajam com trajes de banho.
5- Para o cobrador, os passageiros não aprendem como viajar em coletivos, porque:
a) não pagam a passagem.
b) acham que podem fazer no ônibus o que bem entendem.
6- Quando o trocador tornou a chamar o passageiro, este estava
a) Dormindo, por isso não ouviu;
b) acordado, mas não respondeu.
7- Frente a essa situação, o trocador pediu que cutucasse o braço do moço foi de:
8- A atitude do cavalheiro a que o trocador pediu que cutucasse o braço do moço foi de:
a) Indiferença
b) Antipatia
c) Insolência
9- Explique a diferença que o trocador estabelece entre “pra que, não” e “por quê”.
10 O fato de o moço afirmar que está suando revela que:
a) Está afirmando a verdade, porque fazia muito calor.
b) Está irritando o trocador, pois todos percebem que é absurdo.
c) Está com a razão.
11- O passageiro mudou de atitude quando
a) O trocador chamou-o de recalcitrante;
b) o trocador disse que iria chamar a polícia.
12 – O trocador conhecia o significado da palavra “recalcitrante”?
( ) sim ( ) não
13- O emprego de reticência na frase “vai botar pra fora porque é um ... recalcitrante” indica:
a) Pausa na fala
b) supressão de uma palavra
14- Assinale as causas que determinaram a discussão motivada pelo emprego da palavra recalcitrante.
( ) O passageiro e o trocador desconheciam o significado da palavra.
( ) O moço não a ouviu bem.
( ) O trocador não pronunciou corretamente.
( ) O passageiro julgou que a palavra fdosse uma ofensa.
( ) Não existe a palavra na língua portuguesa.
( ) O passageiro entendeu “réu” calcitrante”.
( ) O trocador pronunciou a primeira sílaba da palavra com som aberto (ré) e forte.
15- O que você entende por “consequências físicas”?
16- Quando o autor afirma que ficou sem saber outras consequências que pode ter havido no emprego da palavra “recalcitrante”, provavelmente estaria se referindo às possíveis significações dadas a esta palavra, seja pelo passageiro ou pelo trocador?
( ) sim ( ) não
17- Se você estivesse no ônibus, a quem daria a razão? Justifique sua resposta.
18- Na usa opinião, o que o autor pretende mostrar com esse texto?
No texto , o autor serviu-se de um recurso da língua muito empregado quando pretendemos estabelecer uma comunicação: a NARRAÇÃO.
Para entender o que é narração, vamos reler algumas partes do texto:
a) “ o trocador, olhou, viu, não aprovou”.
b) “- Ei, moço, quer fazer o favor de levantar.”
c) “Devia estar pensando: Todo ano a mesma coisa”. Chegando o verão, chegam problemas.
Nesses três itens, o autor fala a respeito do trocador contando:
a)o que ele fez;
b) o que ele falou;
c) o que ele pensou.
O trocador é o personagem, isto é, quem vive um acontecimento ou fato.
O que o trocador fez, falou ou pensou é o fato.
São, portanto, elementos básicos da narração: Personagem - Quem participa dos fatos. E Fato – o que aconteceu.
Além do trocador, quais são os outros personagens do texto?
19-Indique nos trechos abaixo:
(a) O que o personagem fez;
(b) O que o personagem falou;
(c)O que o personagem pensou.
( ) “ O trocador esfregou as mãos no rosto, em gesto de enfado e desânimo”.
( ) “- Estes caras são de morte”.
( ) “Não aprendem e não querem aprender”.
( ) Embora sem surpresa, o trocador coçou a cabeça”.
( ) “Ficam de camarote, espiando o circo pegar fogo”.
( ) “ – Eu, descer, porque estou suando?Sem essa”.
( ) “ O passageiro pulou, transfigurado”.
20-Numa narração, os fatos estão dispostos numa ordem. Disponha os fatos do texto numerando-os de acordo com a sequência dada pelo autor.
( ) o passageiro alega estar suando.
( ) Após ter ameaçado chamar a polícia o trocador denomina o passageiro como recalcitrante.
( ) O trocador percebe, no ônibus, a presença de um passageiro com o calção molhado.
( ) A palavra “recalcitrante” provoca a discussão entre trocador e passageiro.
( ) O trocador pede ajuda a um passageiro para chamar o moço.
( ) para confirmar sua exigência, o trocador lê a portaria.
( ) O passageiro é convidado a se levantar.