UMA LEITURA SEMIÓTICA DE “VERSOS ÍNTIMOS”, DE
AUGUSTO DOS ANJOS
(A READING SEMIOTICS OF “CLOSE VERSES”, BY
AUGUSTO DOS ANJOS)
Daniel Levy CANDEIAS (Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas da USP)
Apresentação do autorAugusto dos Anjos não tem uma obra muito vasta, e possui somente uma publicação feita antes de seu falecimento. Sua temática gira quase sempre em torno da fugacidade da vida, de sua nulidade, e do sofrimento que essa última pode causar ao homem. Seu imaginário refere-se com freqüência a elementos da Ciência, como a Física e a Química, numa espécie de “materialização” do ser humano, retratado como mais um dos
seres da Natureza, cuja existência se limita a um fim e a um começo, contrariando todo os pontos de vista, sejam eles religiosos ou filosóficos, que postulam um sentido “antropológico”, uma finalidade, para o mundo.
Tal tratamento dado à Natureza, ao Homem, e à relação entre os dois, é muito semelhante ao dado pelo pensador alemão Arthur Schopenhauer, e se é possível afirmar que há uma interdiscursividade, também é possível fazê-lo coma intertextualidade, já que o nome do pensador aparece na obrado poeta. Segundo o que se lê em O mundo como vontade e representação, a natureza seria regida por uma força oscilante entre vida e morte, denominada Vontade, e ela é que possibilitaria qualquer transformação no mundo. Assim, poder- se-ia deduzir que desde a queda de uma pedra até o apaixonar se por alguém seria regulado por essa força, por meio da qual nada poderia transcender a mera passagem da existência para a não-existência na instância factual - e nessa última, no caso do homem, incluem-se os pensamentos e as sensações.
Ora, partindo desse princípio, a razão, como conceituação e entendimento do mundo, e principalmente a metafísica, não passaria de mera representação do que seria a realidade, definida como o mundo em ato. E essa razão, dando consciência ao homem da força da vontade, faria com que ele sofresse cindido entre a morte e a vida. Segundo argumentos do próprio filósofo, ninguém seria destituído de vontade, e como ter vontade seria sofrer, então: “Viver é sofrer”. O conteúdo temático de Augusto dos Anjos parece se aproximar bastante dessa filosofia, pois costuma se a ter tanto à problemática de o indivíduo buscar uma razão para a vida, que é ilusória, quanto ao fato de que ele é, na realidade, apenas mais um elemento do Todo exterior e maior que o homem: a natureza.
Terminada a breve a apresentação, segue o poema e sua análise.
“Versos íntimos”
“Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”
Num plano de leitura bem concreto, é possível depreender a isotopia de um enterro. O eu lírico encontra-se no sepultamento da última quimera de alguém, sendo que esse alguém pode ser ele próprio, de modo a constituir uma locução, cujo interlocutário pode ser tanto o próprio interlocutor, coincidindo os atores no nível discursivo, ou um ator diferente. Tanto num
caso como no outro, o indivíduo que trava uma conversa num enterro, e que normalmente profere palavras de consolo,mesmo quando é consigo próprio, aparece aqui um tanto quanto revoltado, pois constata que o “cemitério” está vazio, e que só a ingratidão compareceu. Ou seja, as pessoas, que foram beneficiadas pelo interlocutário antes de ele se desgraçar, não se preocuparam com seus problemas, na hora em que precisou
.Na segunda estrofe, com “Acostuma-te à lama que te espera”, afirma-se que essa ingratidão irá se repetir no futuro. Adiante, inicia-se a argumentação de que tirar proveito, ser apoiado e não retribuir é uma característica inerente ao homem, e que, ao contrário da surpresa ou indignação, o enunciatário deve se acostumar, ou seja, não esperar algo
diferente.
Segue, então, uma pequena explicação do motivo que teria levado o ser humano a se tornar assim. De modo semelhante ao “homem lobo do homem” de Hobbes, a ferocidade social causaria a ferocidade individual, porque num sistema assim estabelecido, não haveria como sobreviver de
outra forma se não pelas que vigem. Note-se que as figuras utilizadas por Augusto dos Anjos são muito semelhantes às do filósofo do contrato social: pantera e fera – lobo pode ser considerado como uma fera.
No primeiro terceto, há uma espécie de comemoração. Propõe-se algo como um brinde à realidade, disforizada no início, no qual a bebida é substituída pelo cigarro. Nos versos subseqüentes, as figuras do escarro e do apedrejamento, antecedidas pelo beijo e o afago, podem ser tanto interpretadas como a ingratidão, porque alguém recebe carinho e devolve uma agressão, como a volubilidade, se o carinho e a agressão forem entendidos como modos de ser de uma mesma pessoa - num dia, ela é carinhosa, e no outro, agressiva. No segundo terceto, pode-se depreender o seguinte raciocínio: se o mundo funciona à base da ingratidão, não deixe que a gratidão apareça, e faça-o de modo a ser ingrato também. Mantendo a coerência figurativa da isotopia do enterro, poder-se-ia dizer que se alguém aparecesse para consolar o interlocutário deluto, esse alguém deveria ser maltratado. E assim, dentre a ingratidão e a volubilidade, que podem ser encontradas nos versos anteriores, a paixão anterior parece ser mais adequada, porque grande parte do poema, incluindo seu final, contém
elementos que se referem a ela, enquanto a volubilidade só pode ser depreendida num pequeno trecho.
Feitas essas observações que elucidam o sentido de elementos do nível mais concreto desse texto, é possível pensar em suas relações no que é mais abstrato. O estudo do nível fundamental parece ser o mais adequado nessa etapa do trabalho, pois há indícios do que poderia ser a categoria s emântica que dá conta do nível mais abstrato da significação desse poema em sua constituição figurativa, portanto, no nível mais concreto.
A figura principal do nível discursivo, o enterro da última quimera, é o primeiro ponto que fundamenta a escolha da categoria vida x morte. E o fato de o sepultamento ser dessa última, e não de outro elemento do mundo natural, também pode ajudar a manter essa interpretação. Quimera, fantasia, sonho, ou ilusão, ocorrem quando alguém constrói para si próprio uma situação melhor do que a que está algo como uma nova vida. No caso desse texto, a quimera, que seria uma vida, é morta, e a possibilidade de melhoria se mostra totalmente utópica, porque ela é a última. Assim, é possível dizer que houve inúmeros percursos narrativos, nos quais o sujeito tentou entrar em conjunção com uma nova vida, sem êxito.
Quanto à ingratidão, paixão que aparece logo início serve para todo o percurso temático-figurativo do resto do poema, também é possível afirmar que está relacionada com a morte. E o motivo que leva a essa conclusão é o de que ela pode ser considerada como um comportamento social destrutivo, de modo oposto à gratidão ou ao favor. Afinal, ela é associada à figura de uma fera, a pantera, um animal que representa um risco à vida do ser humano. Assim, é possível afirmar que a sociedade é regulada por esse tipo de comportamento, e apesar das quimeras, talvez o anseio por comportamentos sociais construtivos, a morte é certa, tal qual na Natureza.
Resta uma figura, aparentemente acessória, mas muito importante para a compreensão do poema: o fósforo, que possui um significado especial na obra Augusto dos Anjos.
Segundo consta em um de seus poemas, “Mistérios de um fósforo”, a fugacidade da duração de sua luz seria muito semelhante à da vida, e das ilusões do homem - nesse caso, e especificamente as da razão, do sentido da vida. A existência, seja ela “espiritual” ou material, é comparada ao rápido acender e apagar do fogo do fósforo, que serve apenas de passagem para a matéria sem luz - talvez sem vida - em dois estágios diferentes. Encontram-se, aqui, novamente a concepção de ausência de sentido na vida e a comparação entre o ser humano e a matéria.
Depois desses esclarecimentos, torna-se mais evidente o porquê da substituição da bebida pelo cigarro. Como o fósforo representa a fugacidade da vida ou a afirmação da morte sobre ela, acender um cigarro pode ser interpretado como uma comemoração dessa afirmação – e esse é um dos pontos mais importantes do poema. Se na primeira e segunda estrofe, é convincente o fato de que o comportamento socialmente destrutivo, principalmente a ingratidão, é um elemento relativo à morte, nos tercetos, acontece o mesmo com o escarro e o apedrejamento. O que ocorre é que enquanto na primeira parte, as figuras relativas à morte são disforizadas, na segunda, são euforizadas.
Na primeira estrofe, a valorização da morte é disfórica, pois o enterro, que, normalmente, carrega conotações negativas, em nenhum momento recebe um tratamento que lhe dê um valor diferente. Na segunda, quando se lê “Acostuma-te à lama que te espera”, pode-se entender que ocorre uma não disforização.
O verso “Toma um fósforo. Acende teu cigarro!”, que inicia o primeiro terceto é o verso-chave, porque é a partir dele que a morte passa a ter uma valorização eufórica, contrariando a disforia do começo do poema. Ressalta-se que, se o cigarro representa a fugacidade da vida, porque, inclui
dentro de si o percurso morte não-morte vida não vida
não vidamorte, o poeta dá maior destaque ao percurso da vida à
morte, por causa da curta duração da chama em comparação aos momentos em que ela está apagada. No texto estudado aqui, há um processo semelhante: o “brinde do fósforo” se encontra num percurso de disforia não-disforia euforia da morte, de modo a servir de passagem às duas últimas etapas.
Mas esse percurso não é tão simples assim. Como o início do poema apresenta a morte de uma última quimera, ou seja, a ausência de esperança acompanhada da indignação contra o comportamento socialmente destrutivo, parece que mais do que uma mudança de valorização dos elementos da categoria semântica fundamental, há uma euforização da
disforia.
Afinal, a imagem do interlocutor é a de um sujeito revoltado, que, ao sugerir a assunção da postura que lhe provocou revolta, só pode fazê-lo com tom de queixa. Desse modo, quando o escarro e o apedrejamento são tratados de modo positivo, devem ser entendidos também como negativos.
Essa transformação da disforia simples em euforia disfórica seria baseada num raciocínio que poderia ser resumido por: “se as coisas são tão ruins assim, e não vão mudar, contribuamos”.
Levando em conta a presença do termo complexo eufórico-disfórico, é possível afirmar que o devir se dá por meio de dois percursos, da retenção ao relaxamento e do relaxamento à retenção, respectivamente: retenção(continuação da parada) ⇒distensão (parada da parada) ⇒relaxamento (continuação da continuação) e relaxamento(continuação da continuação) ⇒contensão (parada da continuação) ⇒retenção (continuação da parada). Portanto, a gratidão e o sonho, elementos eufóricos, são disforizados, e a ingratidão e a desesperança, euforizados. As razões que levam o texto a seguir esse percurso se tornam mais claras com o estudo do nível narrativo.
O primeiro programa narrativo que aparece no texto é o do enterro da última quimera, o qual pressupõe uma seqüência de percursos iguais. Quando se lê “Somente a Ingratidão – esta pantera -/ Foi tua companheira inseparável!”, é possível afirmar que a ausência de alguém para consolar o sujeito do ser também é uma repetição, pois a Ingratidão é uma companheira inseparável. Associando essas duas figuras e relacionando coma categoria semântica determinada no nível narrativo, pode-se dizer que o objeto de valor seja algo como os ideais humanos. Ideais, no sentido moral e ontológico. Isso porque há como se estabelecer um vínculo entre a moral e a possibilidade da vida não se limitar apenas matéria, já que uma transcendência depois da morte, além de reservar um provável castigo para os “maus”, ainda fundamenta a hipótese de que há um bem e mal universais. Esse vínculo, que é uma das bases do catolicismo, aparece muito bem explicitado na frase de Dostoievski de que se Deus não existe, tudo é permitido.
É “possível afirmar, portanto, que o sujeito em conjunção com o objeto de valor ideal humano”, mas não consegue, pois o sujeito do fazer “humanidade” coloca-o em disjunção. Talvez por causa dos fundamentos das teorias burguesas, como a do contrato social, que nos aparecem mais variados discursos, ele supõe que é um dever desse sujeito promover tal conjunção. Mas como isso não ocorre, supõe-se uma quebra de contrato, originando, primeiramente, a paixão da insatisfação. Como essa situação se prolonga, pois o percurso da disjunção se repete inúmeras vezes até a última quimera, o sujeito do fazer se torna um anti-sujeito, provocando a cólera.
Resta ainda um problema: o interlocutor indigna-se com a situação em que se encontra o interlocutário, e não ele. O que quer dizer que o percurso narrativo exposto acima funciona melhor no caso deles coincidirem, fazendo do poema algo do ser quer entrar como um solilóquio.
Assim, no nível discursivo, tem-se um homem que perde suas últimas esperanças, e sofrendo com elas, não acha ninguém que possa consolá-lo. Indigna-se com essa situação, na qual não é a primeira vez que se encontra, esbraveja consigo. Enfim, visto que a sociedade só funciona por meio do comportamento destrutivo, ele resolve assumi-lo, depois de se repetirem tantas vezes os momentos em que lhe demonstraram ingratidão.
Excepcionalmente, a cólera desperta uma paixão semelhante à do conformismo, porque o ator se propõe a assumir as características sociais vigentes, mesmo elas sendo reprováveis. Talvez haja também uma espécie de vingança, porque quando se diz que qualquer pessoa que se compadeça dos problemas do sujeito eu lírico deve ser punida, para que a gratidão seja
extirpada, e a ingratidão instaurada em sua plenitude, cria-se uma situação, na qual a reação ao problema é a mesma ação do próprio problema: o modo como a sociedade se configurou teria feito dos homens feras, e o indivíduo específico do poema, apesar de não ter dado nenhuma contribuição para isso (afinal ele se acha vítima de ingratidão), padece disso.
Ora, formulando o imperativo de que qualquer pessoa que se demonstrasse boa deveria ser maltratada, o interlocutor constrói o mesmo percurso, mas dessa vez, sendo sujeito dele, e modificando a relação fórica, talvez para restituir perda.
Note-se que, desse modo, comprova-se a tese de que “O Homem, que, nesta terra miserável, mora, entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”. O texto todo pode ser interpretado como uma figurativização dessa inevitabilidade social, o que é muito coerente com o resto da obra do enunciador. Se o discurso determinista de Augusto dos
Anjos retira o sentido humano da natureza, ele também “naturaliza” o homem, sempre sob os olhos da Ciência. E assim, a sociedade aparece como um grande sistema, tal qual os da química ou da física, formado por regras determinadas e determinadoras, cujos elementos são os homens, dirigidos por suas necessidades biológicas e psicológicas.
RESUMO: Análise semiótica do poema “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos, a partir da teoria greimasiana.Depreendendo-se, assim, os níveis do percurso gerativo de sentido e os efeitos poéticos surtidos pelas relações de isotopia do texto.
PALAVRAS-CHAVE: Semiótica; Greimas; Poesia.
ANEXOS:
Vida Morte